Chamados de “escravos” por médicos brasileiros, cubanos ganham amplo apoio da mídia e da população
Benedito Teixeira
Adital
Enquanto a chefia

da
delegação do primeiro grupo de médicos cubanos que desembarcou no
Brasil nesta segunda-feira, 26 de agosto, exaltava para a imprensa
latino-americana o "caloroso e fraternal” acolhimento do povo
brasileiro, os 96 médicos, sendo 79 cubanos, que chegaram a Fortaleza,
capital do Ceará, por meio do Programa Mais Médicos, tiveram em menos de
24 horas de sua estadia uma surpresa nada agradável.
Durante o primeiro dia do curso chamado "Módulo de Acolhimento e
Avaliação”, que terá duração 21 dias, na Escola de Saúde Pública do
Ceará, antes de sua efetiva atuação profissional, os médicos
estrangeiros foram alvo de um protesto nada "fraternal” liderado pelo
Sindicato dos Médicos do Estado do Ceará. Além dos cubanos, chegaram a
Fortaleza sete médicos espanhóis, três portugueses, um hondurenho, um
ucraniano, um italiano e um mexicano, além de oito brasileiros que se
inscreveram no Programa.
Informações e imagens divulgadas nas redes sociais mostram os médicos
saindo do local, após o curso, e passando por um corredor formado por
manifestantes que esperavam os médicos com vaias e gritos de "escravos” e
"revalida”, este último termo fazendo menção à avaliação que médicos
brasileiros graduados no exterior e estrangeiros precisam fazer para
terem seus registros profissionais validados no Brasil.
De acordo com a assessoria do Ministério da Saúde, ainda durante o
curso, os manifestantes tentaram invadir o local, que precisou ser
fechado, bem como o posto de saúde que funciona anexo à Escola. Os
médicos, funcionários e pessoas que estavam sendo atendidas no posto
teriam ficado cerca de três horas impossibilitados de sair. Em
contrapartida, entidades dos movimentos sociais, como o Centro
Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz),
Levante Popular da Juventude, Casa José Martí Brasil-Cuba, União da
Juventude Socialista (UJS), União Brasileira de Mulheres (UBM) e o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), realizaram um ato de
desagravo ao protesto dos médicos e em solidariedade aos médicos
cubanos nesta terça-feira, também em frente à Escola de Saúde Pública.
O tumulto tem gerado ampla repercussão na imprensa nacional e nas
redes sociais, prevalecendo acusações de xenofobia e racismo da
população contra os médicos que participavam do protesto. Ganhou
repercussão na Internet um comentário feito por uma jornalista do Rio
Grande do Norte, Micheline Borges, colocando em dúvida o
profissionalismo em especial das médicas cubanas, que teriam "cara de
empregada doméstica”, pois "médico, geralmente, tem postura, tem cara de
médico…”.

O
próprio Ministério da Saúde repudia a atitude nesses termos."Entendemos
que essa é uma posição xenófoba, racista e preconceituosa, uma atitude
truculenta e violenta que não caracteriza o povo brasileiro. Esse tipo
de reação não nos fará retroceder e sim fortalecer o Programa”,
declarou, em entrevista a Adital, o secretário de Gestão Estratégica e
Participativa do Ministério da Saúde, Odorico Monteiro.
Ele rebate os questionamentos de entidades de médicas sobre o
Programa, ratificando que serão investidos R$ 15 bilhões até dezembro de
2014, além da contratação de médicos, na reforma e ampliação de 818
hospitais; na compra de equipamentos para cerca de 2 mil hospitais;
construção de 621 Unidades de Pronto-Atendimento (UPA) 24 horas e de 6
mil Centros de Saúde da Família (CSF); além da ampliação de 11 mil CSF,
entre outras obras."Não podemos investir tanto em infraestruturas que
virarão "elefantes brancos” se não tivermos médicos para atender à
população”, ressalta Monteiro, enfatizando que o percentual de médicos
por mil habitantes no Brasil, 1,8, é muito baixo se comparado a países
próximos como a Argentina e o Uruguai. Além disso, haveria uma clara
resistência à atuação de médicos estrangeiros no país, representando
apenas 1,7% do total, enquanto países como Inglaterra e Estados Unidos
teriam 37% e 25% respectivamente.
No primeiro mês de inscrições ao Programa Mais Médicos, cerca de
1.700 profissionais aderiram, sendo 400 cubanos, por meio do que
Monteiro chama de "adesão institucional”. Ou seja, o governo brasileiro
pode firmar convênios com os governos de origem dos médicos. No caso de
Cuba, por meio da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas/OMS). O valor
repassado, R$ 10 mil, é o mesmo concedido aos brasileiros e outros
estrangeiros que aderirem ao programa. Até o fim de agosto, essa
primeira leva de médicos deverá chegar ao Brasil. A outra modalidade de
adesão é a individual. As inscrições ainda estão abertas e deverão ser
reabertas a cada mês até que o governo brasileiro consiga sanar o
déficit de cerca de 15 mil médicos, demandados pelos próprios
municípios. Vale ressaltar que os 96 médicos que já aportaram no Ceará
suprem apenas 13% da demanda.
O valor de R$ 10 m

il
da "bolsa” mensal para os médicos que aderem ao Programa não são
suficientes para as entidades que representam os profissionais
brasileiros. Uma das principais críticas do movimento de médicos, de
acordo com o presidente do Sindicato no Ceará, José Maria Pontes, é que o
valor não compensa o deslocamento para lugares longínquos. "Não é só
pelo valor, é que não há nenhum direito trabalhista garantido”, afirma
Pontes, assinalando que, para que o Programa se torne atrativo, os
médicos querem carreira de Estado, concurso público e melhores condições
de trabalho.
Outra crítica contundente e que motivou o epíteto de "escravos” dado
aos médicos cubanos em Fortaleza durante a manifestação desta
segunda-feira, 26, é que o acordo entre governo brasileiro e a Opas/OMS
prevé que dos R$ 10 mil repassados, R$ 7 mil ficam com o governo cubano,
R$ 700 com o médico e o restante com a família do médico. Essa
informação não foi confirmada pela assessoria de comunicação do
Ministério. A Adital procurou o escritório da Opas no Brasil, mas não
recebeu retorno até o fim desta edição. "A repercussão negativa que o
protesto está tendo na imprensa é porque nossos objetivos estão sendo
deturpados. Quando chamamos os médicos cubanos de escravos estamos nos
referindo ao acordo feito, que, para nós, trata-se de trabalho escravo e
não concordamos com isso no Brasil e em nenhum lugar do mundo”, disse
Pontes em entrevista a Adital.

A
vice-ministra de Saúde de Cuba, Marcia Cobas, afirmou durante a
abertura do curso de treinamento de médicos estrangeiros, em Brasília,
que os médicos cubanos que participam de missões internacionais, como no
Brasil, o fazem por solidariedade e não por salários. "Cuba presta
serviços gratuitos ao Haiti e a países da África. Temos mais de 700
profissionais no Haiti que trabalham de maneira solidária e
internacionalista”, disse.
Há críticas que também apontam para a falta de preparo dos médicos
estrangeiros para lidarem com a realidade brasileira. A assessoria do
Ministério da Saúde rebate informando que os profissionais passarão
obrigatoriamente por uma especialização em saúde da família enquanto
estiverem no Brasil, sem contar que, pelo menos entre os médicos que
chegaram a Fortaleza, todos têm mais de 16 anos de experiência em saúde
pública, a maioria com mestrado e experiência em missões humanitárias
internacionais.
O acordo prevê a vinda de 4 mil médicos cubanos, que devem passar no
mínimo seis meses no Brasil. A validade do acordo é de três anos,
renováveis por mais três. Período suficiente para que as primeiras
turmas de medicina após a criação do Programa Mais Médicos saiam das
faculdades brasileiras. A intenção do Ministério da Saúde é criar 11 mil
vagas de medicina nas universidades e 12 mil vagas de residência até
2017, com foco em áreas pouco valorizadas como clínica geral e
pediatria.