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Ativistas LGBT fazem manifestação pela criminalização da homofobia
Reportagem da série "Cartas na Mesa", da Agência Pública, em que cidadãos brasileiros criticam os candidatos à Presidência da República
No dia 17 de setembro, um rapaz de 17 anos, homossexual, foi encontrado
morto com um disparo na cabeça e marcas de espancamento em um matagal,
na cidade de Bayeux, na Paraíba. Ele teve os cabelos vermelhos raspados e
deixados dentro de uma sacola próxima ao corpo e ao enchimento que
usava nos seios. Seus pertences não foram levados. Três dias antes, no
terminal rodoviário do Jabaquara em São Paulo – cenário de outros crimes
de ódio – três homens homossexuais foram esfaqueados no mesmo horário,
em locais diferentes. Um deles, Samuel da Rocha, 23, não resistiu aos
ferimentos e morreu a caminho do hospital. Ainda em setembro, no dia 11,
um incêndio criminoso destruiu o Centro de Tradições Gaúchas no Rio
Grande do Sul. O ataque aconteceu dias antes da data agendada para a
celebração de casamento civil entre duas jovens e semanas depois de seus
administradores receberem ameaças de represálias. Na véspera, na cidade
de Inhaumas, em Goiás, um garoto de 18 anos foi encontrado assassinado
com indícios de tortura. Em sua boca, um bilhete dizia: "Vamos acabar
com essa praga". O crime que vitimou o adolescente João Antonio Donati
gerou uma série de manifestações por todo o país.
UOL acompanha a reta final da campanha presidencial
Esses crimes comprovadamente ou com fortes suspeitas de homofobia
aconteceram em uma semana, em diferentes regiões do Brasil, e fazem
parte de uma lista muito maior, como se pode constatar no site
Homofobia Mata,
do Grupo Gay da Bahia. Diariamente, o grupo de ativistas contabiliza
crimes de ódio contra gays, lésbicas, travestis e transexuais. E,
infelizmente, não tem faltado assunto. De acordo com o Relatório Anual
de Assassinato de Homossexuais no Brasil, feito pelo grupo, ocorreram
310 assassinatos de gays, travestis e lésbicas, ou um assassinato a cada
28 horas, em 2013.
Rede Brasil Atual
Manifestação contra a homofobia em Brasília
Números oficiais podem ser encontrados no Relatório Sobre Violência
Homofóbica no Brasil, publicado pela coordenação de Promoção dos
Direitos LGBT, da SDH (Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República), em junho de 2013. Segundo o levantamento, em 2012 foram
registradas 3.084 denúncias de 9.982 violações relacionadas à população
LGBT, envolvendo 4.851 vítimas – a maioria delas com idade entre 15 e 29
anos – e 4.784 suspeitos. Um aumento de 166,09% de denúncias e de 46,6%
de violações em relação a 2011, quando foram notificadas 1.159
denúncias de 6.809 violações de direitos humanos contra LGBTs,
envolvendo 1.713 vítimas e 2.275 suspeitos. Em média, foram reportadas
27,34 violações de direitos humanos de caráter homofóbico contra 13,29
vítimas por dia.
"Tais números corroboram a análise feita em
2011 sobre o padrão de sobreposição de violências cometidas contra essa
população. Os dados revelam uma média de 3,23 violações sofridas por
cada uma das vítimas. Esse cenário se torna ainda mais preocupante ao se
levar em conta a subnotificação de dados relacionados a violências em
geral, e a este tipo de violência em particular. Muitas vezes, ocorre a
naturalização da violência como único tratamento possível, ou a
autoculpabilização", diz o relatório da SDH.
Daí a urgência dos
movimentos LGBT em aprovar uma lei que criminalize especificamente a
homofobia. Desde 2001, começaram a tramitar no Congresso as primeiras
iniciativas desse tipo que, em 2006, desembocaram no
PLC 122 com
o objetivo de incluir na lei de racismo os crimes de ódio e
intolerância resultantes de discriminação ou preconceito de orientação
sexual e identidade de gênero. Depois de uma guerra contra o PLC movida
por conservadores, principalmente da chamada bancada evangélica, o
projeto sofreu diversas alterações e acabou sendo apensado ao Código
Penal em dezembro de 2013. Uma derrota para o Movimento LGBT, já que sua
aprovação passou a depender de uma reforma do Código Penal, comemorada
na época por sites gospel com manchetes do tipo "
PLC 122 sepultado: Maioria cristã do Brasil obtém vitória inesperada e surpreendente com sua persistência e mobilização".
Contra, depois a favor, e de novo contra
Uma das vozes mais estridentes contra o PLC 122, que o relator Paulo
Paim (PT-RS) havia prometido aprovar no Congresso no ano passado, era o
pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus – a maior denominação
pentecostal do país, da qual também faz parte desde 1997 a candidata
Marina Silva, por esse motivo vista com desconfiança por grande parte
dos movimentos LGBT. Durante sua campanha à Presidência em 2010, então
pelo PV, ela chegou a verbalizar que era contra o casamento de duas
pessoas do mesmo sexo porque isso iria contra suas convicções
religiosas.
A candidata, porém, surpreendeu a comunidade LGBT este ano com a
primeira versão do seu programa de governo, lançada no dia 29 de agosto.
Entre suas promessas para o segmento, havia a de "articular no
legislativo a votação do PLC 122/06", incluir o combate ao bullying, à
homofobia e ao preconceito no Plano Nacional de Educação e "desenvolver
material didático destinado a conscientizar sobre a diversidade de
orientação sexual e as novas formas de família" – medidas combatidas
pela bancada e comunidade evangélica ainda no governo Dilma, quando o
material didático anti-homofobia, apelidado pejorativamente de
"kit-gay", foi engavetado pelo governo sob acusações dos conservadores
religiosos de "incentivar a homossexualidade".
Mas a surpresa
positiva da comunidade LGBT durou pouco. Ao tomar conhecimento do
programa da candidata Marina Silva, a parcela mais conservadora dos
evangélicos reagiu. Aparentemente, o estopim foi uma série de tuítes
disparados pelo pastor Silas Malafaia, algumas horas depois de o
programa de governo ser lançado, no dia 29 de agosto, sexta-feira, aos
seus mais de 790 mil seguidores: "O programa de governo do partido de
Marina é pior que o PT e o PSDB, no que tange aos direitos dos gays.
Apoia descaradamente o casamento gay e pede, inclusive, a aprovação do
extinto PLC 122, que, entre outras coisas, põe pastor na cadeia. É uma
vergonha que prevê casamento, adoção de crianças e etc", diziam as
mensagens. Então veio o ultimato: "Aguardo até segunda uma posição de
Marina. Se isso não acontecer, na terça será a mais dura fala que já dei
até hoje sobre um presidenciável". Menos de 24 horas depois, ainda no
sábado, a campanha de Marina emitiu uma nota oficial dizendo: "Em razão
de falha processual na editoração, a versão do Programa de Governo
divulgada pela internet até então e a que consta em alguns exemplares
impressos distribuídos aos veículos de comunicação incorporou uma
redação do referido capítulo que não contempla a mediação entre os
diversos pensamentos que se dispuseram a contribuir para sua formulação e
os posicionamentos de Eduardo Campos e Marina Silva a respeito da
definição de políticas para a população LGBT".
Logo em seguida, o secretário nacional do segmento LGBT do PSB, Luciano
de Freitas, deixou o cargo na campanha. Procurado pela Pública, ele
disse que não iria mais falar sobre o assunto "para evitar polêmicas". O
novo secretário, Otávio Oliveira, disse que comunicaria à Pública a
posição oficial da campanha mas não o fez até o fechamento dessa
reportagem.
O pastor, a candidata e os movimentos sociais
Reprodução/Pública
O pastor Silas Malafaia
Para os movimentos sociais LGBT, a explicação não colou. Para grande
parte da sociedade também não. As redes sociais foram inundadas por
mensagens indignadas e os jornais disseram que Marina havia cedido à
pressão de Malafaia. O pastor comemorou em seu Twitter: "O ativismo gay
está irado com Marina! Começo a ficar satisfeito! Valeu a pressão de
todos. Não estamos aqui pra engolir agenda gay". No mesmo dia, o pastor
confirmou seu apoio à candidata no segundo turno.
"Nós
lamentamos porque o PSB é um partido aliado, tinha lançado um programa
muito bom e sob pressão dos evangélicos fundamentalistas Marina recuou e
desconfigurou", diz o presidente da ABGLT (Associação Brasileira de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), Carlos Magno Silva
Fonseca. Para ele, a atitude vai na contramão dos diálogos que têm
acontecido entre o movimento social e os partidos: "Ela cedeu a essa
pressão do setor que mais tem nos perseguido no parlamento e na
sociedade. Por outro lado, essa posição trouxe a pauta para o debate
público e houve uma reprovação desse recuo por vários setores da
sociedade".
Na opinião de Fonseca, além do comprometimento
político, o retrocesso tem um peso social: "Quando o presidente Obama
declarou apoio aos gays nos Estados Unidos, mudou a coisa por lá de
forma simbólica. É uma autoridade apoiando, não é só mais um movimento
social. Isso faz muita diferença", explica.
Cris Steffany,
presidente da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais),
também se decepcionou com o recuo de Marina. "Foi uma vergonha, uma
demonstração clara de que ela tem responsabilidades apenas para com os
fundamentalistas e nenhuma com as causas sociais LGBT. Todos os dias
homossexuais são assassinados com requintes de crueldade. Mais da metade
são travestis e transexuais, a maioria semianalfabetas, pobres e
negras. As travestis já enfrentam o preconceito em casa, sendo muitas
vezes expulsas ainda na adolescência, não conseguem empregos, 99% vivem
na prostituição. Manter a proposta como estava seria de grande valia no
combate à homo e transfobia".
Em entrevista exclusiva à "Pública", Silas
Malafaia assumiu uma posição dúbia diante do caso: de um lado jura
nunca ter falado com a campanha de Marina; de outro não descarta a
possibilidade de que o recuo da candidata tenha sido causado por suas
declarações: "Eu não posso dizer que foi coincidência. E não posso dizer
que não foi por causa da gritaria dos cristãos. Mas posso dizer que eu
não falei com ninguém do comitê dela. Quando eu li e vi como estava,
comecei a tuitar. Se esse é o governo dessa mulher, não, nós lutamos
sete anos por essa porcaria [derrubar o PLC122] e ela vai botar de
volta? Isso é uma afronta! Casamento gay? Como é isso? O Supremo já dá
união civil, você quer dar mais um passo? Casamento para nós é
sacramento, não abrimos mão".
Malafaia também se gaba de ser
alguém com 'certa influência política': "Meu irmão foi o terceiro
deputado mais eleito, com 135 mil votos. Com a minha imagem. Eu ajudei a
eleger três federais aqui no Rio. Eu fui o único cara, na eleição
passada a vereador no Rio de Janeiro, a transferir voto para outra
pessoa. (…) Wagner Montes teve 510 mil votos. Foi o deputado estadual
mais votado. Não conseguiu eleger o filho dele vereador. Eu peguei um
jovem da minha igreja, ilustríssimo desconhecido, e foi o 7º mais votado
na cidade. Eu quero exercer influência e é o que eu faço".
Reprodução/Instagram/muriellefacure
Garota fez foto com pastor Silas Malafaia ao fundo durante voo
Sobre a criminalização da homofobia, Malafaia disse: "Matou um gay?
Cinquenta anos na cadeia. Mas o que eles querem [com o PLC122] é
criminalização da opinião, querem calar a boca de quem fala contra
eles". Em entrevista coletiva dada recentemente em São Paulo, Marina fez
crítica semelhante de forma mais branda: "Eu sou a favor do combate a
qualquer forma de discriminação a quem quer que seja. E a lei precisa
refletir, da forma adequada, como isso será feito. Há uma tênue
dificuldade em se estabelecer o que é a discriminação, o que é o
preconceito em relação ao que é convicção e opinião. É isso que precisa
ser claramente definido. E o projeto ainda não deixa clara essa
diferenciação".
Jogo da maioria
Para a
cientista política e professora da Universidade Federal de São Carlos,
Maria do Socorro Sousa Braga, Marina fez o jogo da maioria: "Ela sabe
que parte expressiva da sociedade brasileira é mais conservadora. Em uma
posição em que um candidato tem chance de vencer, se ela continuasse
com esse tipo de proposta ela perderia essa posição que conseguiu em
duas semanas". Ela lembra que, além dos evangélicos, existem outras
denominações cristãs conservadoras, como os católicos, que incrementam
esse eleitorado. "Os evangélicos têm hoje cerca de 23% do eleitorado
nacional, não é pouca coisa mas também não define eleição. Acontece que
tem uma outra variável, que são os cristãos. Porque, dentro dos setores
conservadores, você tem os católicos e outras religiões que acabam
apoiando essas bandeiras que vão contra as demandas LGBT e a
descriminalização do aborto, por exemplo. Quando você vai avaliar a
bancada evangélica, vai perceber que na verdade é uma bancada de
cristãos. Porque agrega vários partidos de diferentes religiões. O
cimento que os une é o conjunto de medidas a que eles são contrárias.
Está em 60% mais ou menos hoje o eleitorado que se diz católico. Aí
começa a fazer diferença Marina se aproximar dessa seara. Se ela
continuasse com as medidas progressistas, poderia ser uma sangria nos
votos. Mas é claro que é um retrocesso do ponto de vista dos direitos
LGBT", diz.
Bia Cardoso, coordenadora geral do blog Blogueiras
Feministas, vai no mesmo sentido: "Acho importante os candidatos
declararem suas convicções pessoais, mas esperava mais democracia e
laicidade da parte deles. Isso sim seria uma grande contribuição para
desmitificar os temas polêmicos. Porém, mais do que informar e instigar o
cidadão a pensar e refletir, há o medo de perder votos, há o medo de
desagradar os grupos x ou y, e nisso perdemos o debate e ficamos nas
promessas vãs e abstratas".
Maria Berenice Dias, presidente da
Comissão Especial de Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB
(Ordem dos Advogados do Brasil), lembra a importância da sociedade se
posicionar claramente a favor dos projetos que defendem a igualdade, já
que existem projetos de lei que vão justamente na contramão dos
direitos, para proibir adoção por parte de casais gays ou o casamento
entre pessoas do mesmo sexo. "Há um risco grande de a gente retroceder.
Marina recuar me pareceu algo assustador e fundamentalista. Se
compararmos com outros países, nós vivemos no Brasil em um limbo de
garantias e direitos. Só não perdemos para os que criminalizam a
homossexualidade. É uma pena que Marina tenha sinalizado com um avanço e
tenha recuado tão pouco tempo depois".
Da preocupação com a
interferência religiosa cada vez maior nas decisões do Estado,
movimentos sociais, organizações da sociedade civil e organizações
religiosas fundaram o Meel (Movimento Estratégico pelo Estado Laico). A
ideia é debater o estado laico e mostrar para a sociedade que "laico"
não quer dizer "ateu", como explica Yury Orozco, das Católicas Pelo
Direito de Decidir: "Um dos objetivos da laicidade é garantir a
liberdade religiosa dentro de uma sociedade plural. Então, instituições
religiosas democráticas, que não são fundamentalistas, concordam
justamente com essa separação saudável das religiões com o Estado. Mas é
uma luta, porque o contexto atual, não só no Brasil mas em toda a
América Latina, é de que temos essa ingerência cada vez maior de
entidades religiosas sobre o Estado". Ela diz que o objetivo fundamental
do movimento é colocar essa discussão em pauta para que as religiões
permaneçam em seus devidos papéis, para que haja a garantia de direitos
já conquistados, principalmente os relacionados à sexualidade e também
para que haja um aprofundamento da democracia. "Existe essa negociação
histórica do presidente com as religiões. E a moeda de troca sempre tem a
ver com a sexualidade".