Plataforma internacional de microcrédito solidário chega ao Brasil
Um camponês no Quênia precisa de uma moto para entregar seus produtos com mais rapidez. Uma viúva no Tajiquistão
sustenta os cinco filhos vendendo sapatos e quer expandir o negócio.
Uma mãe solteira no Paraguai busca meios de pagar a faculdade e o
material didático. Em comum, eles têm uma realidade social dura e a
determinação de melhorar de vida. E são exemplos dos milhões de pequenos
– muito pequenos – empreendedores espalhados pelo mundo, que têm
sobrevivido e crescido graças a empréstimos coletivos pela internet.
Basta um clique para investir em um projeto e ter o dinheiro de volta
alguns meses depois.
Esse modelo de financiamento vem
revolucionando o microcrédito em países onde o crédito para pequenos
negócios são escassos e com altos juros. Criada em 2005, a Organização
Não-Governamental (ONG) Kiva é uma dessas plataformas, e recentemente
iniciou suas atividades no Brasil.
Os empréstimos começaram em novembro e já beneficiaram 160 pessoas da
região metropolitana de São Paulo, graças à parceria com a ONG Banco do
Povo.
De acordo com o diretor executivo do Banco do Povo, Almir da
Costa Pereira, a parceria com a Kiva é fundamental para massificar os
empréstimos com potencial de inclusão social. “A demanda é grande, são
muitos microempreendedores necessitados de créditos. E nesse período de
crise, o juro encarece muito e fica mais restritivo. Em média, as taxas
de juros no mercado brasileiro para o microcrédito (sem subsídio) variam de 2,5% a 4%. Os clientes do microcrédito do projeto no Kiva pagam 2% de juros.
A
maioria dos clientes beneficiados faz parte de grupos solidários.
“Nosso público preferencial é o de baixa renda, os mais pobres entre os
pobres. Então usamos principalmente a metodologia de grupos solidários,
com trabalho de microcrédito calcado na confiança entre as pessoas”,
explicou o representante da ONG, fundada em 1998. “Eles começam com
operações pequenas, mas com apoio muitos crescem e aumentam as
operações, ajudando a pagar o ingresso de outros que estão começando no
banco. Alguns clientes viraram grandes empresários, mas o fundamental
para nós é que as pessoas melhorem a qualidade de vida”, destacou Pereira.
Moradora
da cidade paulista de Mauá, a quitandeira Thais Sobral da Silva, de 26
anos, é uma das clientes da Kiva. Com R$ 3 mil de empréstimo, por meio
do grupo solidário do qual faz parte há cerca de dois anos, ela comprou
mais mercadoria, uma balança e um moedor para a nova loja. “Somos cinco
pessoas. Um se responsabiliza pelo outro. Pago uns R$ 300 por mês ao
banco”.
Thais vendia verduras e legumes desde os 13 anos e hoje
tem duas quitandas no bairro Jardim Colúmbia, resultado dos empréstimos
solidários. “Sempre quis ter meu próprio negócio. Soube do empréstimo
solidário por uma amiga e me interessei”. O negócio vai bem e ela já
pensa em novo empréstimo. “Quero variar as mercadorias e dar uma
renovada no meu sacolão”.
Hoje ela conta com a ajuda do marido, da
mãe, da irmã e do tio, mas Thais planeja crescer e contratar
funcionários no futuro. “Me sinto muito feliz em estar nessa altura,
nunca imaginava chegar aonde cheguei, não depender de ninguém, sendo
minha própria chefe. E pretendo expandir mais”, disse.
Presente em
mais de 80 países, a ONG Kiva já financiou mais de 2 milhões projetos
totalizando US$ 800 milhões. E a inadimplência em todo o mundo é mínima,
menos de 2% dos clientes deixam de pagar o empréstimo. No caso do Banco
do Povo, a inadimplência dos últimos cinco anos também têm estado nessa
faixa.
Líder de um grupo solidário há cinco anos, Carmelita
Leandro Vendas, de 56 anos, trabalha há 20 anos com vendas de roupas de
cama, mesa e banho. Ela vai de porta em porta atrás da clientela. Com a
Kiva e o Banco do Povo, pegou emprestado R$ 3 mil para comprar
mercadoria, cujo valor deverá quitar quinzenalmente durante dez meses.
“Sempre tem algum calote, mas a gente corre atrás e consegue pagar.
Nunca atrasamos. Uma ajuda a outra, quando tem alguma dificuldade”,
disse, acrescentando, “sou sacoleira e trabalho em casa. Gosto do que
faço. Posso até abrir uma loja, mas não gosto de ficar parada, esperando
o cliente vir. Prefiro ficar livre, poder viajar quando quero”.
A
representante da Kiva Katleen Bennetto atribui o sucesso da plataforma
aos “investidores sociais”, que recebem 0% de juros e não têm incentivo
financeiro na ação. “O que os motiva é o impacto em potencial que seu
capital flexível, tolerante ao risco, terá sobre as vidas dos
mutuários”, explicou. Outro fator importante é o capital a 0% de juros
aos parceiros que possibilita produtos de crédito de maior risco, custos
mais altos ou em fase de pesquisa e desenvolvimento.
Dados do
Sebrae revelam que em 2015 somente 16% do total de microempreendedores
individuais (MEI) solicitaram empréstimo na forma de microcrédito
produtivo e orientado. Desse total, apenas 9% tiveram êxito na
solicitação. Para ser formalizado como microempreendedor individual é
preciso ter um faturamento até R$ 60 mil por ano e ter no máximo um
funcionário, que ganhe até um salário mínimo. O teto do microcrédito no
Brasil é de R$ 15 mil.
O Brasil têm mais de 9 milhões de
microempreendedores, sendo 5,6 milhões empresários cadastrados na
categoria de microempreendedor individual. Destes, 77% querem crescer e
se tornar micro ou pequena empresa. Entretanto, menos da metade (45%)
tem relacionamento com bancos como pessoa jurídica. “Cerca de 80%
utilizam financiamento que não passa por instituições financeiras, como
negociação com fornecedores e cheque pré-datado”, explicou. “Nos últimos
cinco anos, apenas 40% dos empreendedores individuais obtiveram
empréstimo em bancos. Isso mostra que existe espaço enorme de crédito
para os microempreendedores individuais. E os empreendedores fogem dos
bancos por causa das altíssimas taxas de juros”, comentou Afif.
Os
MEI são os que proporcionalmente mais fizeram empréstimos bancários em
nome da pessoa física nos últimos cinco anos: 46%, em comparação aos 17%
dos microempresários e 8% dos empresários de pequeno porte. “Como essa
pesquisa foi inédita, não temos dados para comparar se há um crescimento
ou redução da inserção dos MEI na solicitação de microcrédito”, disse
Afif, ao ressaltar que apesar disso está claro que há um potencial a ser
explorado. “Esses dados mostram que o MEI frequentemente mistura contas
pessoais com as da empresa e optam por pedir empréstimo pessoal em vez
de para sua pessoa jurídica, porque as exigências de garantias são
menores”.
Em toda a América Latina, a Kiva tem 72 parceiros
locais. Na América do Sul, a plataforma atua no Peru, Equador, na
Colômbia, Bolívia, no Paraguai, Suriname e no Chile. A região já recebeu
investimentos da ordem de US$ 230 milhões, nos últimos dez anos. Cerca
de 45% deste total foram destinados a comerciantes e serviços
alimentícios, e 19% a agricultores. Aproximadamente 8% dos empréstimos
foram para habitação, saúde e educação.
“O Brasil tem sido um país
particularmente desafiador no contexto sul-americano, devido a um
sistema de regulamentação bancária mais complexo, mas estamos
convencidos do impacto que a Kiva pode ter e estamos determinados
expandir nosso portfólio no Brasil”, declarou a representante da Kiva.
“Agora estamos buscando futuros parceiros mais focados no microcrédito
rural para populações mais vulneráveis e excluídas do país”.
No
futuro, a ONG estuda implementar um novo modelo, usado nos Estados
Unidos, que dispensa parcerias locais. Nele, o empreendedor faz o pedido
de empréstimo diretamente com a Kiva. Se aprovado o pedido, ele tem 15
dias para conseguir que pelo menos 25 amigos, familiares ou conhecidos
ajudem com o empréstimo. Se atingir a meta, o candidato entra na lista
pública da ONG, que tem juro zero. “Mas no curto e médio prazo o acesso
aos empréstimos da Kiva no Brasil será somente por parceria local”,
explicou.
Na opinião do representante do Banco do Povo, investir
nos microempreendedores no momento atual é ainda mais vital para superar
a crise. “É investimento direto em pessoas que trabalham por conta
própria e fazem a economia girar. Não é recurso a fundo perdido, é um
objetivo real, sem especulação”.