Ontem, durante sessão do STF, ministro já havia chamado de
“bêbados” autores da legislação eleitoral. Hoje, magistrado repetiu as
críticas. Idealizador da lei protesta: “Ele utiliza esse tipo de ataque
no sentido de descredibilizar uma das mais importantes conquistas
brasileiras”, diz Márlon Reis
Divulgação/Agência Brasil
Gilmar voltou a criticar Ficha Limpa. Desta vez, disse que lei não pode ser "canonizada"
O advogado e ex-juiz Márlon Reis, do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), responsável pela criação da
Lei da Ficha Limpa,
classificou como “desrespeitosa” a fala do presidente do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE), ministro Gilmar Mendes. Ele declarou nesta
quarta-feira (17) que a legislação, de iniciativa popular, parece ter
sido elaborada por “bêbados” e que foi “mal feita”: “Sem querer ofender
ninguém, mas já ofendendo, parece que foi feita por bêbados. É lei mal
feita. Ninguém sabe se é contas de gestão, de governo”, criticou durante
sessão do Supremo Tribunal Federal.
A fala também foi criticada, em nota oficial, pelo presidente da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cláudio Lamachia. Ao elogiar a
Ficha Limpa, Lamachia declarou que a afirmação feita pelo ministro não
condiz com a postura que se espera de um magistrado. O presidente da OAB
foi além. Diante das alegações de Gilmar, Lamachia pediu para o
magistrado apresentar à sociedade uma proposta capaz de aperfeiçoar a
legislação.
“O presidente do TSE deveria reconhecer e apoiar todas as iniciativas
que aperfeiçoam o sistema eleitoral. A linguagem usada por ele,
inclusive, não se coaduna com a postura de um magistrado, notadamente um
ministro do STF, na hora de exercer seu direito de crítica, seja ela
direcionada à sociedade, proponente da lei, seja aos parlamentares que
aprovaram a matéria, seja ao chefe do Executivo que a sancionou. A Lei
da Ficha Limpa é amplamente reconhecida pela sociedade como um avanço da
democracia e do sistema eleitoral, impedindo a candidatura de quem tem
ficha suja. Tanto é assim que foi apresentada como projeto de lei de
iniciativa popular. Todas as entidades que apoiaram a Lei da Ficha
Limpa, entre elas a OAB, estavam absolutamente conscientes da
importância dessa medida”, diz a nota da OAB.
Depois da manifestação da Ordem, Gilmar voltou a se posicionar sobre o
tema hoje (quinta, 18). Desta vez, o presidente do TSE alegou que
“bancou-se um pouco de Deus” na criação do texto da lei.
“Não vamos criar polêmica nesse assunto. O que eu disse é que a lei
foi mal feita, tem carências e não pode ser canonizada. A lei chegou ao
ponto de dizer que se alguém for excluído de entidades profissionais,
como a OAB, por algum fundamento, fica inelegível. Quer dizer, bancou-se
um pouco de Deus nessa matéria. E é preciso um pouco respeitar a
inteligência alheia, é preciso que a própria legislação não aproveite
momentos emocionais para trazer coisas absolutamente irracionais”,
enfatizou o ministro.
Desrespeito
O
Congresso em Foco entrou em contato o ex-juiz
Márlon Reis. De acordo com o especialista, o pronunciamento foi feito
por Gilmar porque ele “não gosta da lei em si”: “Ele é contra toda a
lei, ele declarava a inconstitucionalidade de toda a lei, é bom lembrar
disso. Ele é contrário à Lei da Ficha Limpa, obviamente ele utiliza esse
tipo de ataque no sentido de descredibilizar uma das mais importantes
conquistas brasileiras, uma rara lei de iniciativa popular, abraçada por
toda a sociedade”, ressaltou.
“Foi uma frase desrespeitosa à OAB, à CNBB e à muitas organizações
que elaboraram o projeto. Também desrespeita o Congresso Nacional já que
o projeto depois de apresentado passou por toda a tramitação
legislativa, desrespeita o próprio Supremo Tribunal Federal que ele
integra, que declarou essa lei constitucional”, enfatizou o ex-juiz.
“Não queremos que essa manifestação individual de discordância com a
Lei da Ficha Limpa, pela forma como foi feita, supere o que é realmente
importante nessa questão, que é a liberação feita das candidatura dos
que tiveram contas rejeitadas. Estamos tendo muita preocupação porque
essa frase dura proferida pelo ministro não chame mais atenção do que o
grande dano à República causado pela liberação das candidaturas de quem
teve contas rejeitadas”, acrescentou Márlon.
Em nota, o MCCE também repudiou as críticas feitas pelo presidente do
TSE. De acordo com o texto, “o ponto mais importante do debate é o
relativo à permissão para que vereadores sejam os responsáveis por
julgar as contas de prefeitos que usurparam a função de ordenadores de
despesas”.
“O regime de julgamento das contas previsto na Constituição
expressamente estipula que os tribunais de contas julgam as contas dos
que movimentam verbas públicas, sem excluir os chefes do Executivo que
tenham praticado tal conduta”, alega o documento.
Entenda
No último dia 10, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) liberou a candidatura de ao menos 80% dos
políticos inelegíveis pela Lei da Ficha Limpa
a concorrer as eleições de 2016. Em julgamento conjunto de dois
recursos extraordinários (REs 848826 e 729744), ministros entenderam que
é exclusividade da Câmara Municipal a competência para julgar as contas
de governo e da gestão de prefeitos. De acordo com a deliberação do
plenário, cabe ao tribunais de contas apenas auxiliar o Poder
Legislativo municipal, emitindo parecer prévio e opinativo, mas que
poderá ser derrubado por decisão de dois terços dos vereadores.
Em junho deste ano, o Tribunal de Contas da União (TCU) encaminhou ao
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cerca de 6.700 nomes de gestores
públicos que tiveram as contas rejeitadas pelos tribunais de contas
estaduais e municipais. A rejeição, de acordo com a Lei Orgânica do TCU,
é aplicada quando são constatadas omissão de dever de prestar contas;
gestão ilegal, ilegítima ou antieconômica, ou ainda infração à norma
legal de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional ou
patrimonial; dano ao erário, desfalque ou desvio de dinheiro público.
Acesse para ver lista dos políticos que tiveram as contas rejeitadas pelos tribunais de contas estaduais e municipais
“Essa é de longe a causa de inelegibilidade que mais impede
candidaturas de agentes ímprobos. Segundo dados da Faculdade de Direito
da USP, 86% dos casos de inelegibilidade se referem a rejeição de contas
públicas. Se o STF atribuir a palavra final às Câmaras de Vereadores,
esse dispositivo da Lei da Ficha Limpa ficará sem qualquer eficácia”,
explica o MCCE, que já avisou que vai
recorrer à decisão do Supremo.
“Essa decisão amplia o descontrole. É óbvio que vereadores não vão
julgar tecnicamente as contas. As contas de gestão são contas técnicas,
não políticas. Um vereador não pode aprovar contas de um prefeito que
não fez licitação quando deveria fazer, por exemplo. Mas o Tribunal de
Contas pode dizer: ‘Não, a lei mandava fazer licitação nesse caso’”,
detalhou Márlon Reis à reportagem. “Foi um grave equívoco cometido pelo
STF”, acrescentou.
Leia a íntegra da nota enviada pelo MCCE:
“O Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, rede de
organizações da sociedade brasileira que conquistou a Lei da Ficha
Limpa, vem a público emitir seu pronunciamento sobre episódios recentes
envolvendo a eficácia das novas normas sobre inelegibilidades.
Trata-se de uma lei surgida do esforço de grande número de
juristas de notável respeitabilidade, com a colaboração de todas as
organizações representativas das carreiras jurídicas, que cooperaram com
a sociedade civil organizada para a construção de um marco legal
inovador e de alta qualidade sobre os requisitos para as candidaturas.
Além disso, foi aprovada pelo Congresso e declarada constitucional pelo
STF, tendo sido aplicada nos dois últimos processos eleitorais.
Ressaltamos que o ponto mais importante do debate é o relativo à
permissão para que vereadores sejam os responsáveis por julgar as contas
de prefeitos que usurparam a função de ordenadores de despesas. O
regime de julgamento das contas previsto na Constituição expressamente
estipula que os tribunais de contas julgam as contas dos que movimentam
verbas públicas, sem excluir os chefes do Executivo que tenham praticado
tal conduta.
A partir de hoje, o MCCE mobilizará a sociedade brasileira em
defesa do estrito cumprimento da Lei da Ficha Limpa em relação ao
julgamento das contas dos prefeitos ordenadores de despesa.”