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Já dizia Magri: Cachorro tambem é gente.

Sob pressão das ruas, Câmara prioriza os cães Num instante em que dezenas de milhares de brasileiros exigem nas ruas a melhoria das suas condições de vida, a Câmara dos Deputados priorizou nesta quarta-feira (19) o debate sobre a integridade dos cachorros de uma cidade dos fundões do Brasil: Santa Cruz do Acari, na ilha paraense do Marajó.

A prefeitura local convive com a denúncia de patrocinar a matança de cães. Preocupado, o deputado Ricardo Izar (PSD-SP) propôs que a Câmara envie ao município do Pará uma comissão externa. E a direção da Casa decidiu levar a proposta a voto antes de qualquer outra.
A sessão transcorria sob atmosfera de anormal normalidade. De repetente, parte do plenário se deu conta de que flertava com o ridículo. “Desculpe a franqueza, senhor presidente, mas essa é uma matéria para a Câmara de vereadores do município envolvido”, chiou Beto Albuquerque (RS), líder do PSB.
Chico Alencar (PSOL-RJ) ironizaria mais tarde: “As ruas fervem. O povo não quer mais ser tratado como gado. E a Câmara debate comissão externa para verificar a matança de cachorros no Pará!” Ecoando o colega do PSB, Chico avalia que “o canicídio deve ser enfrentado pelas autoridades locais.” Ao priorizar “o tiro no cão”, disse ele, a Casa dá “um tiro no pé.”
Beto Albuquerque recordou que, dias atrás, a Câmara negara-se a votar proposta de envio de uma comissão de deputados para mediar conflito entre índios e fazendeiros, no Mato Grosso do Sul. Lembrou que, na segunda-feira (19), os protestos de rua escalaram o teto do Congresso, roçando as cuias de concreto de Niemeyer –a da Câmara, virada para cima; e a do Senado, emborcada para baixo. “Houve quase uma invasão de gente insatisfeita e mobilizada.”
O líder do PSB foi ao ponto: “Nós estamos sendo analógicos. E a juventude, digital.” Ninguém ignora a importância da “causa da defesa dos animais”, disse ele. Mas mandar uma comissão externa, com ônus para o contribuinte, para tratar dos cães de Santa Cruz do Acari não orna com o pano de fundo da “semana mais dramática que esse país viveu. Será que nós não compreendemos o que aconteceu nessa semana, colegas?”
Um pedido de verificação do quórum evitou a consumação do inacreditável. Por sorte, havia poucos deputados em plenário. E a sessão deliberativa caiu. Numa quarta-feira normal, a pauta de votações seria aberta no período vespertino. O jogo da Seleção do Brasil contra a do México, em Fortaleza, antecipou o expediente.
Ricardo Berzoini (PT-SP) foi ao microfone para fazer uma autodenúncia: “Estamos aqui simulando uma pauta porque, na verdade, cancelamos a pauta da tarde para assistir ao futebol. A Câmara não programou sessão deliberativa para esta tarde e noite. Vai emendar a quarta com a quinta, com a sexta, com o sábado, com o domingo e com segunda-feira.”
Noutros tempos, a semana brasiliense tinha três dias. O Congresso se reunia de terças a quintas. Depois, voltava para suas bases, onde ficava de sextas a segundas. Hoje, o retorno para os Estados ocorre às quintas. Numa semana com futebol, nem a quarta é levada a sério.
O Senado também encurtou sua jornada. Vice-líder do PSDB, Alvaro Dias (PR) pediu a palavra para ironizar o presidente Renan Calheiros (PMDB-AL): “São 15h33. E já estamos iniciando a Ordem do Dia. Após o exemplo de hoje, espero que possamos iniciar nossos trabalhos todos os dias, rigorosamente, às 16h.”
Alvaro prosseguiu: “Hoje se justifica a antecipação. Teremos manifestação lá em Fortaleza.” Referia-se aos protestos que eletrificavam os arredores do estádio. “Aqueles que quiserem assistir à manifestação pela televisão terão a oportunidade de fazê-lo. O protesto já começou. Mas ganhará corpo nas proximidades do estádio, construído nos padrões da Fifa, que os estudantes exigem que sejam estendidos às escolas públicas do nosso país.”
Nesse momento, segundo tempo do jogo da seleção, o deputado Ivan Valente (SP), líder do PSOL na Câmara, discursa para um plenário ermo. “Isso lembra aquela história da Revolução Francesa. Falo de Maria Antonieta. Ela disse para o povo: ‘Não tem pão? Comam brioches!’ Acabou com o pescoço cortado. É isso o que vivemos hoje. O povo está na rua, reivindicações por todo lado. E o Congresso age como se nada estivesse acontecendo. Isso aqui é uma vergonha!”. Em Fortaleza, segue o jogo. Um a zero para o Brasil. Gol de Neymar.
O alarido das ruas levanta a suspeita de que o Brasil convive com uma democracia suicida –os supostos representantes da sociedade não a escutam. O Congresso, como já perceberam alguns dos seus membros, adota um comportamento de alto risco. Caminha à beira na beirada da auto-desmoralização. Mas convém não dizer isso em voz alta. Tomados pelo comportamento suicida, os parlamentares podem ficar tentados a atear fogo às vestes. Tendo o cuidado de se despir antes, que ninguém é bobo.

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