TU? QUE TU
É ESSE?
Marli Gonçalves
Não quero ser chata, nem purista, mas
vocês sabem: a linguagem permeia e constrói a cultura de um povo; é preciso estar sempre atento para os registros de
mudança de comportamento que advém de alguns de seus usos. E o tu está invadindo o mercado, de uma forma invasão
bárbara, sem vir de gaúchos, os únicos que tinham autorização expressa para usá-lo fora de suas
fronteiras
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Tu
estás
percebendo? Não é de hoje, mas está piorando e se tornando muito
frequente, frequente até demais, ouvir o tu aqui fora,
fora da telinha, fora dos programas de tevê, fora das entrevistas de
MJs, DCs, MCs, KYs e novelas, fora dos pampas. Tu para lá e tu para
cá, somados sempre agora a novas gírias, que acabam fazendo com que todo
mundo pareça mesmo pertencente até a alguma
facção criminosa. Tá pegando mal.
Antes, lembro que para
parecer mais descolado, os bacanas
tentavam um sotaque carioca, gingado, caído para o R, alongado no S, o
que era maneiro para as praias, as ondas, o surfe, uma época nas
quais se desbundava. Do tempo que as pessoas eram serelepes, e não
apareciam na sua casa - pintavam. Ganhavam tutu e eram pra frente.
Pois vou botar para quebrar e trazer à baila essa coisa que anda me
irritando: o tu . Andam abusando do
coitado, pondo para quebrar, gastando seu simples uso como segunda
pessoa do singular, onde vivia tranquilo, sendo usado menos, por poucos,
para
conjugar os verbos, dar-lhes um impulso até que encontrasse com seu
plural, vós, esse pronome que enobrece as frases com uma
espécie de realeza quando aparece, majestático. Imperativo.
Aí
deslocaram o tu. Esqueceram que -
sim, ele pode ser usado; embora tu e você se refiram à segunda pessoa do
discurso, cada uma é uma - o que exige as formas verbais
e os pronomes respectivos. Não é só tirar o você e colocar o tu,
entendeste?
O negócio, meu chapa,
está todo aí meio junto e meio misturado e pode dar bode se a coisa se
espalha, igual aconteceu com o gerúndio, tipo dengue,
catapora. Deixaram que traduções do inglês fosse feitas de qualquer
jeito e ele, furtivo, se instalou, principalmente nos
serviços de telemarketing e especialmente quando estamos muito bravos
reclamando de algo. O gerúndio alonga o cumprimento das promessas
das empresas, dá mais tempo. Elas não farão o que você pede, elas vão
estar fazendo. Olha que o tu também
pode ser perigoso, podes crer.
Depois de saber que os
argentinos estão vindo para cá igual a
avalanche de lama em Mariana, penso que o tu pode estar se infiltrando
junto, entrando no país pelas fronteiras descobertas. Preocupa-me
até se não é uma situação embutida, bolivariana maléfica igual na
política. Tradução
livre do castelhano, do espanhol. Como agora questões sociais são
"colocadas", politicamente corretas, e o tu tem vindo na linguagem das
favelas lindas, maravilhosas, turísticas, aprazíveis que as cenografias
montam, há de se prevenir. Repararam que os ricos de
tevê andam adorando largar suas casas, até mansões, para viver nas
favelas, tão legais são?
O você está em risco, alardeio. Vou
mostrar para tu, eles estão dizendo, tu percebeste? Você percebeu?
A gente já devia ter desconfiado desse problema - que ficaria mais sério
- quando apareceu aquela mensagem do deputado Vacarezza para o
então governador do Rio, Sergio Cabral: "você é nosso e nós somosteu
(sic)".
O tu é nosso,
ninguém tasca, existe, está aí, mas anda tentando se aproximar demais, abraçar singularmente, como um pronome pessoal reto
que é, curto, contundente, sonoro como tiro, e até engraçadinho quando se confunde o som e se passa a noite procurando por ele,
como na música de arrasta-pé. "Morena diga onde é que tu tava, Onde é que tu tava, onde é que tava tu.Passei a
noite procurando tu, Procurando tu, Procurando tu"...
Tu é a segunda pessoa; você, a terceira pessoa; eu,
a primeira. Tu é credencial de gaúcho, objeto identificador. Tu é chique, aristocrático, tem de vir com seus salamaleques.
Estranho ele estar querendo se popularizar assim. Deve estar assistindo a muita novela.
Ou acha que se não tem
tu, vai tu mesmo.
São Paulo, 2016
Marli
Gonçalves é jornalista - Tu sabes lá o que é isso?
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MARLI@BRICKMANN.COM.BR
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