Apesar de seu significado, de suas consequências e de sua brutalidade
política, a tentativa de destruição eleitoral de Luiz Inácio Lula da
Silva, em curso, não é a ameaça mais grave que paira sobre o futuro
imediato das forças populares, mesmo porque a vida política não se reduz
ao processo eleitoral e porque não existem, nesse âmbito, derrotas
definitivas, nem absolutas. Basta ouvir a história.
O
movimento reacionário que nos governa hoje pensando em um projeto de
poder de muitos anos –à margem dos mecanismos da democracia
representativa e da soberania popular – volta suas poderosas baterias
(políticas, midiáticas, policiais, judiciais) apenas incidentalmente, ou
taticamente, para a figura do ex-presidente e eventual candidato à
Presidência, pois seu alvo verdadeiro, de vida e morte, é o símbolo
Lula, com toda a sua profunda carga emocional.
Simbologia que não se reproduz senão a espaços largos de anos e em condições objetivas e subjetivas que raramente se repetem.
O
símbolo Lula é um produto social; como construção coletiva, não
pertence a si mesmo. É instrumento do imaginário: é, hoje, a leitura que
dele fazem seus contemporâneos. A imagem de Lula caminha para além dos
limites de país, simbolizando para o mundo afirmação das possibilidades
dos trabalhadores.
O
processo social não conhece a autogênese. Lula, tanto quanto o partido
que fundou, o Partido dos Trabalhadores (PT), são (independentemente um e
outro de seus muitos erros) o fruto da acumulação das lutas sociais,
são o resultado das tantas batalhas em defesa da democracia, dos
conflitos sociais e de classe, são a condensação de mais de um século de
conquistas sindicais reunindo, numa só herança, desde os anarquistas do
início do século passado até o varguismo que a socialdemocracia de
direita, da UDN de Carlos Lacerda ao tucanato de Fernando Henrique
Cardoso, intenta destruir.
Ambos,
Lula e o PT, são um só fruto dos avanços políticos mais consequentes do
fim da ditadura militar, direitos consagrados pela Constituição de 1988
que ainda ambos, Lula e o PT, equivocadamente, se recusaram a assinar.
O
‘risco Lula’ não se reduz ao seu notório potencial eleitoral a ameaçar
os sonhos continuístas do assalto neoliberal, até porque outras
alternativas haverão de ser construídas; o perigo, a ameaça, residem
principalmente – e nisso está sua maior gravidade – no que o líder
popular representa e simboliza para as grandes massas como exemplo de
afirmação histórica da classe trabalhadora.
A
destruição política de Lula, ainda que necessária para o projeto de
regressão ao passado, é perseguida pelos algozes de hoje (muitos deles
aliados de ontem) como instrumento de destruição da expectativa,
prelibada, de os trabalhadores conquistarem o poder e o exercerem
diretamente, isto é, sem a clássica e corriqueira delegação a um
representante da classe dominante.
No
caso concreto, duas imagens precisam ser derruídas: a do operário
transformado em político vitorioso e a do Lula presidente, isto é, de um
governante de raro sucesso. Esta é a tarefa urgente, mas não é tudo –
pois o projeto da classe dominante é quebrar as veleidades
auto-afirmativas da classe trabalhadora. Trocando em miúdos, os
trabalhadores precisam conhecer o seu lugar. Este é o recado que nos
mandam.
Certa
feita, ainda presidente da República, Lula se auto-qualificou pela
negativa, isto é, como ‘não de esquerda’. Ignorava ele que personagem
histórico não ocupa, necessariamente, o papel que se escolhe, mas aquele
que, consoante suas circunstâncias e as contingências históricas, lhe é
dado desempenhar num determinado momento.
Assim,
independentemente de sua vontade e da vontade de seus adversários de
classe, Lula, hoje, não apenas atua no campo da esquerda como é, a um
tempo, o mais importante líder desse segmento político e o mais
importante líder popular em atuação. E é isto o que conta para a crônica
de sua condenação.
Muitas
vezes, na política, e estamos em face de um caso concreto, o personagem
histórico se aparta de sua trajetória pessoal, linear, e passa a viver
uma nova vida no imaginário popular: ele é ou passa a ser o que
simboliza perante as massas. Tiradentes é o ‘protomártir da
Independência’, a princesa Isabel ficou nos manuais da história do
Brasil como ‘a redentora’, Deodoro como ‘o proclamador da República’.
Getúlio
Vargas superou o papel de chefe da revolução de 30 ou de ditador para
ser recepcionado pela história como o pai da legislação trabalhista, o
pai dos pobres e herói nacionalista. Assim foi chorado pelas massas
órfãs, ensandecidas, desarvoradas com o choque de seu suicídio. Os
símbolos são a argamassa da política.
Voltando:
o que Lula representa hoje, além de uma razoável expectativa de poder?
No plano simbólico ele nos diz, ditando lição subversiva, que o homem do
povo pode chegar à presidência da República sem precisar atravessar a
margem do rio onde só se banham os donos do poder; subvertendo a ‘ordem
natural das coisas’, ele nos diz que o povo pode pretender escrever sua
própria história.
Isto
é intolerável em sociedade que, desde sua origem – da oligarquia rural
aos rentistas do capitalismo moderno –, se organizou segundo a
disjuntiva casa-grande e senzala, células incomunicantes, cujos
personagens têm, ‘por natural’, papéis definidos e próprios que não se
podem confundir: de um lado os mandantes, de outro, os mandados, de um
lado os senhores de direitos, de outro os portadores de deveres e
obrigações. De um lado o capital, de outro o trabalho, seu servidor. A
díade imutável de nossa monótona história.
Pela
primeira vez na República um trabalhador, operário de macacão e mãos
sujas de graxa, se fez líder trabalhista e presidente. Não se trata mais
de um quadro da classe dominante operando a mediação entre capital e
trabalho, como Getúlio, como Jango conduzindo as massas e dialogando em
seu nome com a classe dominante, como um dos seus. Com Lula as massas se
expressam, pela vez primeira, sem a intermediação do populismo. E isso
não é pouco.
Pela
primeira vez os trabalhadores, majoritariamente, se identificam com um
partido criado e liderado por um dos seus. Não são mais pingentes de
partidos da estrutura clássica que generosamente abrem espaços para a
manifestação dos quadros da classe média, que neles podem atuar
defendendo os interesses dos dominados: nem é mais o PTB, nem são mais
os Arraes ou os Brizolas que falam pelos trabalhadores.
Nem
são mais os comunistas do capitão Prestes, ou os intelectuais de
esquerda que traíram sua origem de classe para se aliar aos
trabalhadores, às grandes massas dos excluídos, aos deserdados da terra,
para lembrar Frantz Fanon.
E isso não é pouco.
Nesse
mundo dividido entre desenvolvidos e subdesenvolvidos, entre centro e
periferia, entre mandantes e mandados, não cabe aos de baixo levantar a
cabeça, pensar em riqueza e desenvolvimento, senão tão-só assistir aos
banquetes dos poderosos e sonhar que sempre lhes sobrarão migalhas.
Nesse
mundo conflagrado, no mundo da recessão, no reino do neoliberalismo,
neste país conformado com a injustiça social e praticante das
desigualdades, de renda e de toda ordem, a ascensão das massas, a
revelação de sua capacidade organizativa e a construção de uma liderança
própria constituem, aos olhos da casa-grande, péssimo e perigoso
exemplo. Precedente que os donos do poder não querem ver repetido, e
para evitá-lo tudo farão. Sem medir meios.
Assim
se explica o empenho em que se aplica a oligarquia governante visando a
destruir essa liderança que fugiu ao seu controle, no intento de
impedir que outras, tão ousadas, lhes sigam as pegadas e o mau exemplo. É
preciso, pois, desconstituir a boa memória de seu governo e destruir
sua honra.
É
preciso destruir o líder e ao mesmo tempo, desestimulando-a,
vacinando-a contra ‘aventuras’ futuras, quebrar o ânimo da classe
trabalhadora. Nesta tarefa todos estão empenhados, para dizer a essas
massas, que Lula não passa de um mito, que seu partido não passa de uma
fraude a ser exorcizada, que essa experiência foi na verdade um rotundo
fracasso, uma mentira, uma lenda.
A
classe trabalhadora, mais uma vez vencida, diz-nos a oligarquia dos
proprietários, terminará por aprender uma velha lição: não está em suas
posses conduzir as próprias rédeas. Volte, pois, para o chão de fábrica.
Enfim,
a reação autoritária pretende ensinar à classe trabalhadora que seu
papel é subalterno ao do capital e que ela tem de se conformar em ser
caudatária da classe dominante.
Resta-nos
aceitar passivamente a depredação, ou resistir com toda a veemência – e
não apenas, claro está, em nome da integridade física e moral do
indivíduo Lula; menos ainda para livrá-lo (e seu partido) do julgamento
da história a que todas as lideranças políticas devem, ao fim e ao cabo,
estar submetidas. Mas para preservar um patrimônio que nos ajudará a
atravessar a noite da restauração conservadora, brutal, impiedosa,
despida de todo escrúpulo, e já iniciada.
O símbolo é um patrimônio coletivo.
Roberto Amaral
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