Duas mulheres incomuns: a saga de Etma contada por sua amiga Renata
O destino marcou o encontro entre estas duas mulheres incomuns. Agora uma resolveu contar a história da outra.Entre as tantas histórias que serão publicadas neste 8 de março, o Dia Internacional da Mulher celebrado em todo mundo, caiu nas minhas mãos a saga de Maria Etma Sousa Rêgo Macedo, 45 anos, nascida no sertão do Piauí, que Renata Kotscho Velloso, paulistana, minha sobrinha de 43 anos, hoje vivendo na Califórnia, transformou num livro.
A vida da autora daria outro livro: formada em Administração Pública pela FGV, trabalhou por dez anos em grandes instituições financeiras e, quando já tinha três filhas, resolveu estudar Medicina na Unicamp, em Campinas, mesmo morando em São Paulo. Com a transferência do marido, Rodrigo, que trabalhava no Google, para os Estados Unidos, foram gostando da nova vida, e ficando por lá, sem planos de voltar ao Brasil tão cedo.
A meu pedido, Renata me mandou uma breve sinopse e um trecho do livro que reproduzo abaixo:
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Maria Etma, nordestina, empregada doméstica, nascida e criada no sertão do Piauí, migrou para São Paulo aos 17 anos e trabalhou na casa de Renata, paulistana, médica, nascida na capital e criada em um bairro nobre da Grande São Paulo, migrou para a Califórnia aos 37 anos. Hoje, Etma se orgulha de ser dona de 4 casas e 8 terrenos, enquanto Renata mora de aluguel e se orgulha de limpar a própria casa. Duas mulheres, mães, separadas pela distância social e geográfica e unidas pela admiração mútua, pela amizade e pela condição feminina contam juntas essa história tão simples e comum quanto emocionante.
Na biografia de uma empregada doméstica contada a sua ex-patroa e amiga, o livro dá voz para a mulher nordestina falar sobre a liberdade da infância no sertão, sobre a importância do trabalho para a autonomia feminina, sobre os desafios da maternidade, sobre as ilusões e a realidade do amor e do casamento e, principalmente, sobre a importância do afeto e das nossas raízes. Conta também como é possível construir os nossos sonhos, pouco a pouco, mesmo nos terrenos mais áridos e inóspitos.
Aqui um pequeno trecho do livro para abrir o apetite e a curiosidade do leitor:
“Logo que eu cheguei em São Paulo, como eu falei, eu ficava o dia todo em casa. Não estava presa, mas era como se estivesse. Meu esposo não queria que eu saísse de casa porque dizia que era perigoso, e eu tinha medo também. Eu ficava apavorada com o barulho dos carros, com aquele monte de gente. Todo mundo parecia apressado, mau humorado, triste. Muito diferente do sertão.
No início, meu marido também não me deixava trabalhar. Ele queria que eu ficasse em casa, cuidando só dele, e depois dos meninos. Mas um dia, quando os meninos estavam com 4, 5 anos a empresa que ele trabalhava, uma metalúrgica, faliu.
Meu marido ficou desempregado, trabalhando só com bicos que ele conseguia arrumar, mas pagava pouco. Com o tempo começou a faltar coisas em casa. O nosso aluguel foi ficando atrasado e o nome dele ficou sujo por um tempo. Eu dou muita importância para o nome, então aquilo para mim era um motivo de muita vergonha. Para o meu esposo também.
Nós morávamos naquela casinha pequena, em situação precária, mas os meus filhos estavam acostumados a ter de tudo. Meu esposo, quando chegava em casa do trabalho, sempre trazia um brinquedinho ou um doce para eles. Ele quase nunca chegava em casa de mãos abanando, sempre vinha com uma lembrancinha, um agrado para as crianças.
Como a situação foi piorando, a minha cunhada Guia foi conversar com o meu marido e pediu para ele me deixar trabalhar. Ela era empregada doméstica e a casa vizinha de onde ela trabalhava estava contratando uma empregada. Era uma família bem rica e tradicional que tinha vários empregados: motorista, copeira, jardineiro.
Meu marido não disse nem que sim, nem que não. Ficou ali, parado, calado. Mas eu via as coisas em casa acabando, a situação apertando. Então eu decidi ir onde a minha cunhada tinha falado, e acabei sendo contratada pelo Seu Peta.
No começo desse trabalho eu estava muito nervosa. Não tinha experiência nenhuma e nunca tinha nem entrado em uma casa como aquela. Eu tinha 23 anos e nunca tinha trabalhado assim de verdade, com carteira assinada e tudo. Mas a minha patroa, a Dona Marlene falou que eu não precisava me preocupar. Ela disse que preferia alguém sem manias, que ela pudesse ensinar a fazer as coisas do jeito que ela gostava. Então eu fiquei mais sossegada. Mas ela era muito exigente.
Dona Marlene e Seu Peta eram italianos, pessoas muito distintas. Além daquela casa enorme perto de Cotia, eles também tinham uma fazenda em Itapetininga, no interior de São Paulo. Lá eles criavam avestruz e outros bichos silvestres. Mas a vida deles também não era nada fácil. O Seu Peta sofria de câncer e a filha deles, a Monique, frequentemente precisava ser internada por problemas psiquiátricos.
Depois de quinze dias que eu estava trabalhando, o Seu Peta chamou todos os funcionários no escritório dele. A Silvia, que era a cozinheira da casa, perguntou porque eu não tinha ido. Eu não entendi bem, e perguntei “Mas o que eu vou fazer lá?”. Então ela me explicou que eu tinha que ir porque era o dia do pagamento.
Quando eu cheguei no escritório ele já tinha pago todos os funcionários. Eu era a última. Ele então me disse “acabou todo o meu dinheiro, agora só tenho notas de 5 reais, tem problema para você?”. Eu respondi que não, de jeito nenhum, que ele pagasse como pudesse.
Na época o meu salário era de 280 reais. Era muito dinheiro para mim. Eu nunca tinha recebido tanto dinheiro na minha vida. Foi a primeira vez que eu coloquei as minhas mãos naquela quantidade de dinheiro. Ele me deu então um montão de notas de cinco reais.
Quando acabou o expediente naquele dia eu fui para casa toda feliz com aquele monte de dinheiro. Era um bolão na minha mão. Antes de chegar em casa eu passei na padaria. Estava muito animada. Comprei um frango assado, porque fazia tempo que a gente não tinha mistura para comer.
Quando eu cheguei em casa, os meninos estavam assistindo TV e o meu marido estava deitado dormindo. Ele estava descansando porque naquela época estava pegando uns bicos `a noite, então só podia dormir durante o dia.
Quando eu entrei, fiz igual ao Silvio Santos. Joguei aquele bolo de dinheiro pra cima, gritando “quem quer dinheiro?” e aquelas notas de 5 reais foram caindo, como uma chuva de dinheiro. Foi uma festa! Eu estava muito orgulhosa do meu trabalho.”
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