Opinião

“NENHUM INFERNO ABAIXO DE NÓS”

Por Veveu Arruda

Conheci o Padre Osvaldo quando eu era criança. Nessa época, nossa família passava, pelo menos, seis meses do ano no sítio que meus pais, Maria do Carmo e Luciano Arruda, tinham no Outro Lado do Rio,
como era chamado o bairro Dom Expedito, por volta dos anos 60. O Padre Osvaldo era o Vigário da igreja de São Pedro e morava numa casa bem simples, quase em frente à igreja.

As missas aconteciam com a igreja cheia e as pessoas atentas. Recordo-me do Padre Osvaldo visitando as famílias de artesãos, pescadores, canoeiros, lavradores, empregadas domésticas, comerciários, desempregados, em suas casas. Gente muito simples e pobre. Nas mais distantes, ia na sua bicicleta, com um chapéu quase aprumado. Algumas vezes, interrompemos um bate-bola na rua de areia para o Padre passar pedalando. Sorrindo, agradecia com um suave gesto de cabeça.

Percebi, ainda naquela época, com o convívio no bairro, que além do sacerdócio, o Padre Osvaldo exercia o mister de professor no Colégio Sobralense.

Posteriormente, tive o privilégio de ser seu aluno. Nunca mais deixei de aprender. É certo que, antes de ser aluno, na observação seletiva de menino danado, eu já aprendia com ele, nos tempos do Outro Lado do Rio, fosse ouvindo-o falar, fosse pelo seu silêncio ou fosse vendo-o fazer aquilo que o tornava um padre diferente.

                
 Na vida do Padre Osvaldo, há uma profunda relação entre o altar, a sala de aula, a rua e a poesia. O senso de realidade, sem fantasia. Onde pedra é pedra, chão é chão. A coerência, a esperança e a inteligência criativa e, por vezes, inquieta, são como uma espécie de fio que transpassa e interliga esses ambientes, próprios da história dele.

“imagine não haver o paraíso”

Indagado sobre a certeza da fé, base fundamental da sua existência: “Padre Osvaldo, o senhor acredita mesmo na ressurreição?
“ Eu fiz uma aposta, meu filho, quando eu morrer se não houver céu, ressurreição, não terá ninguém lá pra mangar de mim. Se existir, ganhei a aposta.”

“Imagine todas as pessoas vivendo a vida em paz”

A uma amiga, mãe amorosa e aflita, que foi lhe pedir para orientar o filho, em risco, porque estava envolvido com comunistas e na luta contra a ditadura militar, ele disse:
“ Deixe o seu filho viver a escolha que ele fez, esse comunismo dele o faz muito mais cristão e católico que alguns que assim se dizem e não o são.”

E no sermão do domingo seguinte, na missa que também celebrava uma data importante para aquela família, realçou o bom exemplo daquele jovem, registrando a boa educação que recebia dos seus pais, inspirado no Sermão da Montanha.

“imagine todas as pessoas partilhando o mundo”

Um dia ele nos orientou a escrever para colegas estudantes de outras escolas em países de língua portuguesa. Portugal, Angola e Moçambique. Muitos de nós redigimos cartas descrevendo o Brasil, falando de Sobral, de nossas famílias, de nossos gostos e preferências, de nossos desejos e sonhos. Professores de Língua Portuguesa dessas escolas nos colocaram em contato com seus alunos, que também nos escreveram.

           
    E assim se estabeleceu um interessante network, (sem Facebook, Twitter ou WhatsApp), feito com caneta, papel e selos postais, interrompido pela ação repressora da Polícia Federal, que após visitas ao Padre Osvaldo e a nós, proibiu o intercâmbio cultural feito com a troca de cartas.

A proibição se fez mais instigante para mim do que as interessantes noticiais e informações dos patrícios. Como as ideias têm força e são te- midas !

Fomos proibidos de dialogar e fazer novas amizades com alunos em países que viviam a Revolução dos Cravos, que pôs fim à ditadura de Salazar, em Portugal, libertando ex-colônias africanas. Isso porque aqui, no Brasil, sofríamos a ditadura militar, cuja força repressora frequentava as salas de aulas do Colégio Sobralense. Padre Osvaldo nos estimulava a ler, nos ensinava a escrever e, especialmente, nos ensinava e nos instigava a pensar.

“imagine que não haja posses”

Visitar o Padre Osvaldo é uma experiência extraordinária no encontro com a essência da existência humana: “eu vim para servir e não para ser servido”.Essa é a característica da vida deste homem especial, que nos serve sobretudo com a força da fé e a lucidez do conhecimento, com a simplicidade e o desapego.

No jardim de árvores nativas, inclusive com exemplares de paubrasil, Dulce, fiel guardiã, nos recebe com agradável e discreto sorriso. Depois da porta, nos encontramos com a velha bicicleta que nos lembra das andanças do Padre Osvaldo, encostada na parede que sustenta as fotos nos dando boas vindas: Jesus, Marx, Freud e Einstein. Eles simbolizam a fé, o materialismo histórico, a subjetividade humana e a ciência como síntese da caminhada da humanidade.
No caminho, corredor a dentro, encontramos pequenas rolinhas que, livres voam e cantam sobre mesas, cadeiras e livros, apontando a direção da sala, onde balança comportada a cadeira do nosso Padre Osvaldo Chaves com sua sabedoria aos 95 anos.

           
    “você pode dizer que sou um sonhador”

Depois de vencermos a resistência do Padre Osvaldo estamos publicando 40 dos seus muitos sermões. Por tempos, ele não permitiu a publicação, principalmente por zelo ao sentido do pensamento feito em palavras ditas, quase sempre de improviso, que difere do sentido do raciocínio posto em textos, elaboradamente escritos. Ele tem razão. Certa vez argumentei, buscando convencê-lo: Padre Osvaldo, mesmo com a possibilidade de alguma pequena imprecisão entre o dito e o escrito, vale a pena porque servirá para a instrução dos que não lhe conheceram, nem lhe ouviram dizer os seus sermões.

Novamente lembro, que depois de ler esses Sermões, você poderá ver em cada um deles, e no seu conjunto, a inteligência criativa, a profunda coerência e a singular bagagem intelectual que construíram o pensamento do Padre Osvaldo e, principalmente, o viver dele. O melhor sermão do Padre Osvaldo é sua vida.

imagine e viva

  
José Clodoveu de Arruda Coelho Neto [Veveu], foi Prefeito de Sobral,Ceará, é professor da Universidade Vale do Acaraú – UVA e Pesquisador Convidado na Universidade de Columbia, Nova York, EUA.

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