Novembro negro

 


Lideranças negras do Ceará conquistam destaque na política, religião, academia e cultura popular

No encerramento do Novembro Negro, a Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS) conversou com cinco lideranças negras atuantes em diferentes áreas para conhecer suas trajetórias, desafios e conquistas na desconstrução das hierarquias produzidas pelo racismo e pelo sexismo. Homens e mulheres que sonham de olhos abertos e tecem dia e noite uma grande teia chamada democracia racial.

A coordenadora Especial de Políticas Públicas para Igualdade Racial da SPS, Martír Silva, destaca que ainda há espaços que precisam ser acessados, lugares de poder e de tomada de decisão que guardam raízes de um racismo que estruturou a formação do Brasil e que precisa ser destruído de dentro para fora, a partir do despertar desta consciência racial.

Vera Rodrigues: Do movimento negro à universidade

Primeira mulher negra a concluir mestrado em Antropologia na  Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Vera Rodrigues reitera: “Raça não é recorte, não é apêndice, é centralidade”. Professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab), Vera também coordena o curso de extensão Mulheres Negras Resistem, processo formativo teórico político para mulheres negras, e integra o Fórum Cearenses de Ações Afirmativas e Relações Étnico Raciais.

Vera Rodrigues é gaúcha e ingressou no Movimento Negro nos anos 90. “O fato de assumir uma identidade racial é assumir uma consciência racial de que o racismo permeia nossa vida. Poderia citar várias situações em que sofri racismo, mas prefiro dizer que fui entendendo melhor como enfrentá-lo através do meu ingresso no movimento negro. Foi lá que recebi diversos incentivos para adentrar a universidade e a lutar pelas causas que me mobilizam, que são a luta antirracista e o protagonismo das mulheres negras”.

Vera Rodrigues destaca que o mês da Consciência Negra é uma data construída pelo movimento negro brasileiro. “Para combater o racismo eu acredito que nós precisamos querer de fato combatê-lo, nos comprometer de fato nesta luta. Quem é branco, precisa entender que acessa privilégios e fomenta desigualdades raciais, e é partindo dessa ideia de consciência, assumindo os nossos lugares sociais e fazendo frente aquilo que são as feridas sociais que vamos combater de fato o racismo”, conclui.

Maria de Tiê: Tesouro Vivo do Ceará que traz no sangue a cultura da resistência

Maria Josefa da Conceição, a Maria de Tiê, carrega no sangue a cultura da resistência. A resistência está na dança e no cuidado em alimentar as tradições nas novas gerações. Ícone da cultura tradicional popular cearense, Maria de Tiê é Tesouro Vivo do Ceará, com título de Notório Saber em Cultura Popular pela Secretaria de Cultura do Ceará.

Nascida em 1958, no município de Porteiras, Maria de Tiê é bisneta de escravizados e fala da importância do ato de resistir. “Aqui no quilombo dos Souza eu entendi a importância do significado de ser uma mulher negra e trabalhar com outras mulheres negras, que aprendem desde muito cedo que é preciso lutar pelos nossos direitos”.

“Aos 10 anos de idade eu já participava das danças do Coco, Maneiro Pau, banda Cabaçal e Reisado. Tenho muito orgulho de conseguir levar esses saberes populares que aprendi com meu pai adiante, este trabalho que eu faço aqui é pelo amor que tenho a minha cultura e ao meu povo”, relata a mestre de cultura.

A alegria de manter viva sua cultura foi também uma forma de enfrentar o racismo: “Passei por muito preconceito nessa vida, já fui chamada de tantos nomes pejorativos por ser uma mulher quilombola… E quando eu chorava e não entendia porque estava sofrendo aquela violência, eu conseguia transformar aquilo em outra coisa, criava uma música, e fortalecia ainda mais minha arte”, lembra Maria, que aposta sempre na luta coletiva: “Eu aprendi que só a gente não anda, só andamos coletivamente e é este o meu trabalho. Conduzir meu povo através do saber popular para que possamos alcançar juntos as melhorias para a nossa comunidade”, frisa Maria de Tiê.

Mãe de Santo, teu nome é Zimá

Zimá Ferreira da Silva tinha sete anos de idade quando teve o primeiro contato com as entidades da umbanda. Aos 14, ela entendeu que só cumpriria sua missão no mundo dentro da religião. Hoje com 74 anos, Mãe Zimá segue na missão de conduzir seus filhos de santo e ajudar a todos aqueles que a procuram no Terreiro de Ogum Megê, no Parque São Vicente.

“Minha maior missão aqui nessa terra é ajudar a todos aqueles que chegam à minha casa necessitados, seja de um direcionamento, um conselho, uma palavra de conforto ou um prato de comida. Sei que ainda existe muito preconceito com as religiões de matrizes africanas, mas a gente combate é exaltando cada vez mais a beleza do nosso povo. Dentro do meu terreiro e como Mestra da Cultura me sinto fortificada, amparada por todos que me cercam”.

Mãe Zimá destaca que não se pode esquecer de tudo o que significou a escravidão e de suas cicatrizes ainda hoje, inclusive todo o preconceito que chega às religiões de matrizes africanas. “Nós, povos de terreiro só buscamos fazer o bem e a caridade e queremos ser vistos pelo que somos de verdade”, reforça Mãe Zimá, que fala com sabedoria sobre ervas medicinais, benzeduras e orações fortes, garrafadas, chás de ervas e lambedores, tudo parte da sabedoria que ela adquiriu com seus ancestrais e trazem consolo a quem busca o terreiro.

Adriana Gerônimo - Co-vereadora pela mandata coletiva Nossa Cara

Cria da comunidade do Lagamar, Adriana Geronimo (32) cresceu rodeada por mulheres que foram inspiração para traçar sua trajetória enquanto militante pelos direitos humanos. “Destaco duas mulheres que me marcaram com suas lutas, Dona Rita Emídio, que trouxe água potável para o meu território e desenhou o plano de urbanização na década de 90. A segunda é a Edinar que lutou pela urbanização mas não chegou a ver esse projeto ser concretizado em vida, uma mártir do povo, que dedicou sua vida à luta social”, conta Adriana, que é filha da cozinheira Maria de Fátima Vieira Silva e do carpinteiro José Gerônimo da Silva, e mãe de Lolita e Dandara.

Assistente social, Adriana foi eleita co-vereadora pela mandata coletiva “Nossa Cara”,  composta também pela professora Louise Santana e a artista Lila Salu. “Fomos eleitas com 9.824 votos, e isso se deve ao reconhecimento das nossas trajetórias de militância e também ao movimento político de ocupação de mulheres negras. Somos sementes de Marielle Franco. Avalio também que a novidade do mandato coletivo trouxe muitos adeptos à esperança de construir uma política com a cara do povo trabalhador”, destaca a vereadora.

Adriana pontua que a mandata coletivafoi resultado da demanda de diversos movimentos populares, mas o que a animou de verdade, foi a ida em, 2019, ao encontro do Ocupa Política, onde conheceu e passou a entender melhor o funcionamento dos mandatos coletivos eleitos. “Foi no Ocupa Política  que entendi o quanto seria interessante elaborarmos essas ferramentas criativas para ocupar a política aqui em Fortaleza, que ainda é tradicional e conservadora”, complementa.

Ainda na adolescência ela atuou no Grupo JBD Lagamar, grupo de jovens católicos ligado às Comunidades Eclesiais de Base, também presidiu a Fundação Marcos de Bruin, articulou a luta pela ZEIS do Lagamar e atuou no enfrentamento às obras de remoção em sua comunidade, além de ter trabalhado como assistente social na Rede Acolhe da Defensoria Pública do Estado. A vereadora também é co-fundadora da FavelAfro, cooperativa de mulheres periféricas da comunidade do Lagamar, e integra o Grupo Jovens em Busca de Deus.

Adriana ressalta o potencial revolucionário da eleição do coletivo:  “Sofremos violência política de gênero dentro e fora da Câmara, mas entendemos que inauguramos um novo fazer político que serviu inclusive de inspiração para novas candidaturas coletivas e para que outras mulheres negras se colocassem para essa tarefa política”.

Liderança Política – Waldemir Catanho

Waldemir Catanho morou na Barra do Ceará e conta que era raro, naquela época, as pessoas da periferia frequentarem uma universidade pública. “Meus pais tinham uma condição financeira razoável e consegui ter uma boa base, cheguei a fazer Química Industrial no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) e passei no vestibular para Comunicação Social, na Universidade Federal do Ceará (UFC), onde entrei em contato com o Movimento Estudantil e passei a militar pelos direitos das minorias e pela justiça social”, lembra Catanho, que era também diretor do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Têxtil.

Catanho trabalhava e estudava vislumbrando um futuro melhor não só para si, mas para todos que viriam depois dele, para todos que tiveram o acesso à educação e aos direitos básicos negados. Ele teve sua formação política na luta estudantil, sindical e trabalhista e aposta que as conquistas para superar os anos de escravidão só se dão de forma coletiva. “Só conseguimos pautar nossa causas se estivermos organizados. Precisamos de organização política urgente para combater estes levantes contra a nossa democracia”, destaca ele, que acredita que é preciso provocar as políticas públicas para pautar cada vez mais a igualdade racial como uma urgência de reparação histórica.


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