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Bom dia

"...eu vim ao mundo para deflorar florestas virgens...e deixar meus pés na areia..."

Quando li José Régio pela primeira vez, botei na cabeça de um dia ver sua tumba e o escrito de sua lápide.
Nem uma coisa, nem outra. Passei uma semana inteira na terra dele, Vila do Conde, meia hora de trem desde a cidade do Porto.
E por pura coincidência fiquei num hotel butique de oito quartos, impecável lugar. Cada quarto tem o nome de um poema dele. Fica bem na beira do Rio Ave. Na beira. Os rios das pessoas especiais não têm margens, têm beiras. Então, passei uma semana sob a herma erigida em sua memória ouvindo dele mesmo o recitar de seus poemas. E isso tanto bem me fez que passei a ser melhor, mais claro, menos rude, mais crítico e menos cáustico. Erigi a mim a herma do outro eu e passei, definitivamente, a escrever de duas formas; pra viver e pra comer. Por fim o deleite de ver a vida a meu derredor, enquanto ela se esvai com o tempo e o uso. Como agora, quando sob um sol abrasador, manhã cedo, reencontrei o Clóvis. E passei a refletir com o Clóvis.
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Clóvis, o provedor
Na esquina da Rua Israel Bezerra com Leonardo Mota, nas proximidades da Assembleia do Estado do Ceará, de emissoras de rádio e televisão, redações e agências de propaganda e turismo, tem um tronco. Um tronco morto. Cortaram-se a cabeça, os braços, grande parte do peito e, morto, tem os pés fincados sobre uma calçada esquecida no tempo e no espaço.
O Clóvis, já teve vida. Deu sombra e acalanto para muitos que um dia assediaram seus galhos de onde brilhavam seiva e o mel da vida, ora nos protegendo do sol inclemente, ora apontando o céu como caminho para quem ousasse viver uma vida de paz, logo quebrada pela especulação e pelos prédios edificados à sua volta.
Morto, o Clóvis foi esquecido. Lá no canto dele, mudo e sem serventia, ganhou o abandono dos homens, talvez os mesmos que um dia desfrutaram dos bens que produzia. Como os homens, o Clóvis deixou de ser visto e incensado ao findarem seus benefícios, diminuírem seus favores, afinarem seus dedos longos para os abraços e os adeuses. É assim, pensaria o Clovis, se o Clovis pensasse.
A vida, a natureza, infatigáveis testemunhas da historia, trataram de dar ao Clóvis o que o Clóvis merecia. Não propriamente um enterro digno, um fim com causa e feito depois de uma vida longa como a que se conta aqui. O Clóvis ganhou a parceria do céu e da terra. No seu tronco, vi nascer plantinhas pequeninas que me acenavam com flores à minha passagem.
Outro dia, um dia qualquer, vi o Clóvis com ar de comovido. Molhado, chuva a banhar sua vida, dava chão para um jardim às plantas que desciam de seu topo para forrar o piso à volta com um tapete verde, desarrumado, porém cheio de seiva, argumento para os observadores daquela cena diária de quem lhe acompanha a vida, pós morte.
O Clóvis floresceu. Quer dizer, a vida no Clóvis floresceu, com verde, flores, diversidade e um misto de paz e demonstração de quem nem tudo morre, quando lhe tiram a vida. O Clóvis é , mesmo morto, um exemplo de resiliência? Juro, dedos em cruz sobre os lábios, não sei. O Clóvis que poderia ser tratado como um amigo, que nem a natureza faz, é cuidado hoje pela natureza que teima em viver à sua volta e pelos homens que lhe cercam de lixo que as competências não vêm, não sabem, não ligam.

O Clóvis, entretanto, é nosso. Nosso exemplo e inspiração.

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