Procuradoria acusa réus de agirem em conluio com chefes de organização criminosa para produzir mentiras sobre as urnas eletrônicas e atacar comandantes das Forças Armadas
FOTO: Rovena Rosa/Agência BrasilImagem de urna eletrônica com os dizeres "Fim" na tela. Ao fundo, três mesários
Urna eletrônica em seção eleitoral cenográfica
A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal começou a julgar nesta terça-feira (14) os sete réus acusados de espalhar desinformação contra urnas eletrônicas, instituições e comandantes militares com o intuito de dar um golpe de Estado para manter Jair Bolsonaro no poder após as eleições presidenciais de 2022.
Esse é o núcleo 4 da trama golpista, conforme classificação feita pela Procuradoria-Geral da República. São ao todo quatro núcleos, e apenas os integrantes do núcleo 1, o chamado núcleo crucial do golpe, já receberam suas sentenças. É o caso de Bolsonaro, condenado a 27 anos e três meses de prisão em 12 de setembro.
Os integrantes do núcleo 3, conhecido como núcleo tático, que inclui militares envolvidos no plano de assassinato de autoridades, serão julgados em novembro. Já os membros do núcleo 2, o núcleo gerencial, vão a julgamento em dezembro.
Sete pessoas integram o núcleo 4, formado majoritariamente por militares do Exército brasileiro. São eles:
Ailton Gonçalves Moraes Barros (major da reserva do Exército)
Ângelo Martins Denicoli (major da reserva do Exército)
Carlos Cesar Moretzsohn Rocha (presidente do Instituto Voto Legal, que realizou uma auditoria paralela nas urnas eletrônicas a pedido do PL)
Giancarlo Gomes Rodrigues (subtenente do Exército)
Guilherme Marques de Almeida (tenente-coronel do Exército)
Marcelo Araújo Bormevet (agente da Polícia Federal)
Reginaldo Vieira de Abreu (coronel do Exército)
O presidente da Primeira Turma, Flávio Dino, reservou quatro dias para as sustentações orais e leituras dos votos. O julgamento deverá se estender até, no máximo, dia 22 de outubro.
Neste texto, o Nexo explica as acusações contra os réus do núcleo de desinformação.
A atividade central
De acordo com a denúncia da Procuradoria-Geral da República, os membros do núcleo quatro “propagaram notícias falsas sobre o processo eleitoral e realizaram ataques virtuais a instituições e autoridades que ameaçavam os interesses do grupo”.
A função deles era a de auxiliar o núcleo 1 – liderado por Jair Bolsonaro, pessoas de seu entorno e militares de alta patente – a colocar em xeque o sistema eletrônico de votação por meio de desinformação, com o objetivo final de conseguir uma ruptura democrática.
Segundo o procurador Paulo Gonet, todos os integrantes do núcleo 4 estavam cientes do plano maior da organização criminosa, liderada por Jair Bolsonaro e demais membros do núcleo um, e da “eficácia de suas ações para gerar instabilidade social e consumação da ruptura institucional”.
O núcleo teria atuado prioritariamente na divulgação de estudos infundados sobre a ineficácia das urnas eletrônicas e dos códigos-fonte, além de notícias falsas sobre registros de votos após o término oficial da eleição.
Na denúncia, Gonet afirma que, embora a atuação do núcleo da desinformação tenha se acentuado em 2022 por causa das eleições, houve uma ação progressiva e coordenada do núcleo 4 com os demais já a partir de julho de 2021.
Em seu relatório, o procurador lembra que Jair Bolsonaro “inaugurou” seus ataques às urnas ainda antes, em 2018, após ser eleito presidente da República e alegar, sem quaisquer provas, que havia sido eleito já no primeiro turno.
De acordo com a PGR, os pronunciamentos de Bolsonaro, até então, eram pontuais e insuficientes para afetar a opinião pública, mas ganharam “contornos massivos e contundentes” a partir de uma live realizada pelo ex-presidente em 29 de julho de 2021, nas dependências do Palácio do Planalto, cujo tema foi desacreditar as urnas. O impulso para acelerar as ações de desinformação, segundo a PGR, foi a possibilidade de derrota de Bolsonaro na eleição de 2022, conforme apontavam as pesquisas de opinião divulgadas à época.
A articulação do núcleo 4 com os demais, mas principalmente com os cabeças do golpe, seguiu até janeiro de 2023, afirmou a Procuradoria, dando causa aos eventos de 8 de janeiro de 2023 na Praça dos Três Poderes.
Nas investigações que antecederam a denúncia da PGR, a Polícia Federal afirmou que Jair Bolsonaro e o grupo de desinformação propagavam a ideia de vulnerabilidade do sistema eleitoral a partir de informações infundadas por meio do “gabinete do ódio” .
O gabinete foi uma estrutura à parte da Secretaria de Comunicação do governo com assessores focados em redes sociais e na gestão de páginas da família Bolsonaro, cujo papel era direcionar ataques a adversários políticos e difundir desinformação.
A Procuradoria também afirma que o núcleo 4 se utilizou de estrutura, recursos e ferramentas da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) para gerar as notícias falsas que eram propagadas sobre autoridades e instituições.
De acordo com a PGR, os acusados do núcleo de desinformação cometeram cinco crimes:
Organização criminosa armada (três a oito anos de prisão)
Tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (quatro a oito anos de prisão)
Golpe de Estado (quatro a 12 anos de prisão)
Dano qualificado pela violência e grave ameaça (seis meses a três anos de prisão)
Deterioração de patrimônio tombado (um a três anos de prisão)
Os incitadores do Exército
Três membros do Exército brasileiro que estão no núcleo de desinformação se aproveitaram do seu trânsito no meio militar para incentivar a adesão de membros das Forças Armadas à tentativa de golpe de Estado: o major expulso do Exército Ailton Gonçalves Moraes Barros, o tenente-coronel Guilherme Marques de Almeida e o coronel Reginaldo Vieira de Abreu.
Segundo as investigações, Barros, um ex-militar expulso do Exército, discutiu em dezembro de 2022, junto com Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, um eventual golpe de Estado no país – a conversa foi realizada em três áudios encontrados pela Polícia Federal.
Há outros registros de Barros incitando ruptura democrática, como uma conversa de WhatsApp com o general da reserva Walter Braga Netto, que chefiou a Casa Civil e o Ministério da Defesa, foi candidato a vice de Bolsonaro e pegou uma pena de 26 anos pela trama golpista.
Foi a Barros que Braga Netto disse para “oferecer a cabeça” de Freire Gomes, general que comandou o Exército entre março e dezembro de 2022 e se recusou a aderir aos planos de golpe. Barros também foi orientado por Braga Netto a atacar o ex-comandante da Força Aérea Brasileira, o tenente-brigadeiro Baptista Júnior, outro que não aderiu aos planos de ruptura.
A defesa do major nega que ele tenha feito uma campanha de difamação contra os comandantes, e afirma que suas publicações de teor golpista nas redes sociais tinham o intuito de fazer “marketing pessoal”.
Almeida, que comandava o 1° Batalhão de Operações Psicológicas do Exército, aparece em áudios sugerindo “sair das quatro linhas da Constituição” e em conversas com o tenente-coronel Mauro Cid enviando links e materiais com desinformação para serem distribuídos e postados em plataformas como o canal Terça Livre, de Alan dos Santos, investigado pela propagação de conteúdos falsos e foragido nos Estados Unidos.
O militar sugere ainda, em áudios obtidos pela PF, que os manifestantes que estavam acampados no Quartel General do Exército em Brasília deixassem o local e fossem se manifestar no Congresso Nacional. A defesa de Almeida alega que ele não produziu nenhum conteúdo desinformativo e apenas encaminhou mensagens que lhe haviam sido repassadas.
Reginaldo Vieira de Abreu tentou manipular o relatório das Forças Armadas, divulgado após o segundo turno de 2022, que atesta que não houve fraude nas urnas eletrônicas. De acordo com a PGR, o militar também imprimiu seis cópias do documento “Gab Crise GSI”, que seria o planejamento de um gabinete de controle, formado por militares, de uma eventual crise que poderia ocorrer na tentativa de golpe.
Abreu sugeriu ainda, em mensagens interceptadas pela PF, que Jair Bolsonaro se reunisse apenas com a “rataria” para dar andamento às ações golpistas, e que “o pessoal acima da linha da ética” no meio militar não poderia estar presente. Seus advogados também negam que ele tenha participado da trama.
Os aliados da Abin
De acordo com a PGR, o agente da Polícia Federal Marcelo Araújo Bormevet e o subtenente do Exército Giancarlo Gomes Rodrigues, que na época estava cedido para a Abin, atuavam como uma “central de contrainteligência da organização criminosa”: ambos, por meio de ferramentas de pesquisa e outros recursos da agência de inteligência, obtinham informações para produzir desinformação contra os opositores.
Os dois atuaram na gestão de Alexandre Ramagem, hoje deputado federal (PL-RJ) e condenado a 16 anos e um mês de prisão. Na sua diretoria, a Abin, de acordo com investigações da Polícia Federal, foi usada para atender a interesses pessoais do governante e perseguir opositores.
Bormevet também foi quem ordenou um subordinado a agredir um assessor do ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF. Sua defesa afirma que ele não tem nenhum vínculo com os outros integrantes do núcleo de desinformação e, portanto, não pode fazer parte de organização criminosa nenhuma.
Já Rodrigues era subordinado de Bormevet. O subtenente do Exército teria usado ferramentas como a First Mile para auxiliar na disseminação de informações falsas.
Desenvolvida pela empresa israelente Cognyte, a ferramenta de monitoramento fornece em um mapa a localização da área aproximada de celulares que usam as redes 2G, 3G e 4G: para isso, é inserido o número de telefone de quem se pretendia monitorar. Com isso, é possível obter históricos de deslocamentos e criar alertas em tempo real.
No STF, os ministros Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux foram monitorados com a ferramenta. Ainda depõe contra a dupla Bormevet-Rodrigues mensagens sobre a minuta do golpe que seria assinada por Bolsonaro. “Nosso PR imbrochável já assinou a porra do decreto?”, perguntou Bormevet em uma mensagem obtida pela polícia. “Porra nenhuma!”, respondeu Rodrigues.
Os advogados de Rodrigues afirmam que ele não produziu nenhum conteúdo falso e apenas concentrou seu trabalho em notícias já existentes.
O marketeiro
O major do Exército Ângelo Martins Denicoli é apontado na denúncia da PGR como a pessoa que coordenou a profusão e a difusão de estudos que teriam identificado inconsistências nas urnas eletrônicas, sobretudo a live do influenciador de extrema direita argentino Fernando Cerimedo.
Depois da derrota de Bolsonaro no segundo turno das eleições, Cerimedo realizou uma live em novembro de 2022, que mostrava um dossiê que foi desmentido e detalhado com explicações pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Posteriormente, Cerimedo atuou como marqueteiro da campanha vitoriosa do presidente argentino Javier Milei.
Com o material do influencer em mãos, Denicoli ajudou na disseminação da live com as informações falsas. Segundo a PGR, as mensagens encontradas pela Polícia Federal na investigação mostram a proximidade entre Denicoli e Cerimedo. Em sua delação premiada, o tenente-coronel Mauro Cid afirmou que o major do Exército era parte de um grupo “empenhado” em encontrar fraudes nas urnas eletrônicas.
Os advogados de Denicoli alegam que não há provas de que ele tenha tido um papel ativo na disseminação de notícias falsos.
O auditor paralelo
O engenheiro Carlos Cesar Moretzsohn Rocha, que se autointitula como um dos “inventores” da urna eletrônica no Brasil e é presidente do Instituto Voto Legal, é apontado pela PGR como o responsável pela produção de um relatório que citava supostas fraudes nas urnas eletrônicas. Na época, o estudo foi chamado de uma “auditoria paralela” no sistema de votação brasileiro e foi feito a pedido do PL de Valdemar da Costa Neto.
De acordo com a PGR, Rocha foi orientado a selecionar teses hipotéticas de indícios de fraudes nas urnas para serem testadas pelo Instituto. A denúncia mostra que, embora Rocha soubesse que o sistema eletrônico é seguro, ele especulou sobre o ano do modelo de fabricação.
Segundo o relatório do Instituto Voto Legal feito para o PL, nas urnas de modelo 2020 (40% do total), Bolsonaro teria atingido 51,05% dos votos, e Lula 48,95%. O instituto alegou que esse seria o único modelo “auditável”, o que não é verídico. Com base no relatório, o PL pediu ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) a anulação de parte dos votos computados, o que não foi atendido. O partido foi condenado por litigância de má fé e teve de pagar uma multa de R$ 22 milhões.
Rocha alega ter feito apenas um trabalho técnico de auditoria, atendendo ao seu contrato de prestação de serviços com o PL. Ressalta também que foi o partido, e não ele, quem resolveu levar o relatório ao TSE.
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