Contato

Sobraram só os cães: 'guerra' gera fuga em massa e deixa vila deserta no CE

 

Foto - Rede Social

Eduarda Esteves - Do UOL, em São Paulo
Crianças brincando na rua, missa aos domingos, quadrilhas juninas, eventos coletivos na praça e confraternizações entre os vizinhos já não fazem mais parte da rotina do pequeno distrito de Uiraponga, em Morada Nova (CE), a 215 km de Fortaleza. Há cerca de três meses, um conflito violento entre facções criminosas transformou o local em um vilarejo quase deserto.
Insegurança mudou rotina do distrito
Pessoas foram forçadas a sair de suas casas. Com medo, muitos se mudaram para residências de parentes em outros distritos de Morada Nova, e alguns conseguiram fugir da cidade. Quem ficou é porque não teve condições financeiras de sair, disse ao UOL um morador que preferiu não se identificar.
As cerca de 300 famílias que viviam ali — aproximadamente 2 mil pessoas — fugiram após ameaças dos criminosos. Agora, menos de 10 casas permanecem ocupadas em Uiraponga.
Sem escola, sem posto de saúde, sem comércio. O cenário parece de filme. A igreja fechou as portas desde a escalada de violência no distrito. O que antes funcionava como uma escola, hoje virou uma base policial improvisada e os alunos precisaram ser transferidos para instituições de ensino do centro de Morada Nova. Os atendimentos do único centro de saúde da cidade também foram interrompidos.
Quem viveu em Uiraponga e hoje caminha pelas ruas do distrito se diz entristecido. Praça vazia, casas fechadas, muitas inclusive com marcas de tiro, e um silêncio que só não é maior por causa dos cães que foram abandonados pelos moradores que saíram às pressas e não tiveram condições de levar os animais.
Moradores se orgulhavam de viver no local, carinhosamente chamado de "meu país Uiraponga". "A gente tinha quadrilha junina, time de futsal, festa do padroeiro, é muito triste como isso acabou", lamentou o morador.
Passar lá e ver o distrito abandonado, realmente uma cidade fantasma, é difícil. As pessoas choram muito com saudades. Eu vejo pessoas que algumas famílias foram embora, até do estado já, porque não podem ficar por causa dessa guerra, principalmente pelo envolvimento de parentes
Economia da região gira em torno da agricultura e pecuária, que foram deixados para trás. Quem não tinha comércio na região ou trabalhava nos órgãos públicos da prefeitura, precisou deixar para trás o sustento. "Essas pessoas estão desempregadas, sem ter ajuda de nada. Soube que alguns, mesmo com medo, decidiram voltar, porque não têm para onde ir, e lá pelo menos têm a casa própria", relatou o familiar de um morador.
Continua após a publicidade
Muitos estão passando fome aqui na cidade [Morada Nova], o aluguel é muito caro, a maioria só vive da renda do Bolsa Família, que só dá para comer. Se for pagar aluguel, não sobra para comer.
Familiar de morador de Uiraponga
Deputado propôs projeto de lei para conceder auxílio financeiro aos moradores. O Sargento Reginauro (União) sugeriu a criação do Programa Aluguel Social Emergencial, para garantir auxílio temporário mensal de R$ 600 para pessoas ou famílias que tenham sido forçadas a abandonar suas residências em razão de ameaças, coação ou violência praticadas por organizações criminosas.
Apesar disso, PL sequer foi pautado na Alece (Assembleia Legislativa do Estado do Ceará). "Eu já tentei todos os requerimentos, tentei convocar o secretário de Segurança para esclarecimento, mas a assembleia não aprova. Nós queremos indenizar as famílias que estão sendo expulsas, porque essas pessoas estão perdendo tudo e elas estão completamente sem perspectiva", explicou em entrevista ao UOL.
Confronto entre criminosos, com corpo exibido na praça pública do distrito, foi estopim da onda de violência. Na madrugada do dia 3 de julho deste ano, criminosos invadiram a casa de um homem e efetuaram vários disparos contra ele. A vítima, identificada como José Audivan Bezerra de Freitas, 50, teve o corpo exposto na praça.
Continua após a publicidade
Moradores contaram ao UOL que os conflitos se acirraram desde 2020 e se intensificaram em 2025. A ordem para expulsar os moradores ocorreu após membros de facção Guardiões do Estado, do Ceará, mandar matar um membro do Terceiro Comando Puro Cangaço, braço de uma facção do Rio de Janeiro.
As duas facções disputam o domínio do local para monopolizar o tráfico de drogas no Vale do Jaguaribe, principalmente, Uiraponga. José Witals da Silva Nazário, conhecido como Playboy, rompeu com a facção Guardiões do Estado e se aliou ao TCP Cangaço. Depois, Witals passou a ameaçar o antigo aliado, Gilberto de Oliveira Cazuza, o Mingau, então chefe do tráfico local, do Guardiões do Estado.
Playboy se uniu a um homem identificado como Márcio Jailton da Silva, o Piolho, e passaram a ameaçar moradores. Segundo a polícia, a dupla fazia ameaças pelas redes sociais, dando ordens para que todos abandonassem suas casas. Eles intimidavam pessoas que, supostamente, seriam ligadas a Gilberto Mingau.
Playboy foi preso no fim de julho, em São Paulo, para onde havia fugido, e Piolho foi preso no Ceará. O primeiro já tinha registros de três homicídios dolosos, além de antecedentes por roubos, receptação e tráfico de drogas. Já Mingau está foragido e integra a lista de mais procurados do estado.
Tensões entre grupos rivais também envolvem rupturas em uma mesma facção. Na avaliação de Luiz Fabio Paiva, professor e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da UFC (Universidade Federal do Ceará), eles criam uma zona de tensão que, em determinado momento, se vira contra os próprios moradores.
Eles não só ameaçam as pessoas que estão ali envolvidas diretamente com a facção que domina aquele território, mas toda a comunidade, porque é uma comunidade composta muitas vezes por familiares e amigos de faccionados. Então, esses grupos também levam em consideração isso. Eles buscam alcançar o faccionado, a pessoa que é integrante do grupo rival, mas também a sua rede de relações, de amizades
Luiz Fabio Paiva, professor da UFC
Criminosos acusam, muitas vezes, moradores de serem delatores ou simpatizantes dos rivais, explica o professor. "Na maioria dos casos, esse morador não tem absolutamente nenhuma relação, mas há também interesses de domínio territorial, de domínio de imóveis, então é uma situação muito complexa".
Fabio Paiva ressalta ainda que a realidade do interior do Ceará é bem mais difícil do que a da capital. O pesquisador lembra que em Fortaleza as facções avançam, sobretudo nas periferias, mas há estrutura do estado, como delegacias, batalhões da Polícia Militar, e um conjunto de serviços de segurança, que podem ser acionados em situações como essa. "No interior isso é mais difícil. Temos um déficit muito grande em termos de serviços de segurança pública".
A única alternativa que resta aos moradores é fugir, porque efetivamente eles têm a lei, mas não podem contar com serviços próximos de segurança. Isso evidencia uma dificuldade do Estado na sua missão que é a de proteger e garantir a segurança dessas populações.
Luiz Fabio Paiva, professor da UFC
O que dizem as autoridades
A prefeitura reconheceu em decreto a escalada da violência, suspendeu atendimento em um posto de saúde e transferiu alunos. No decreto, a gestão municipal descreveu a situação do distrito como "anormal e emergencial". A medida autoriza o poder municipal a adotar ações administrativas urgentes e provisórias, para tentar garantir a continuidade da prestação dos serviços públicos à população.
Continua após a publicidade
Governo do Ceará esclareceu que realizou prisões e acompanha o caso dos moradores ameaçados. A SSPDS (Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social) detalhou que vêm realizando ações para prender tanto os mandantes, quanto os executores dos crimes na região. A pasta também destacou que equipes da Polícia Militar ocupam por tempo indeterminado a região.
Governo diz que Uiraponga tem uma viatura de Força Tática 24 horas por dia. Os crimes na região são investigados pela Delegacia de Polícia Civil de Morada Nova.
O Ministério Público do Ceará afirmou que acompanha desde julho a situação do distrito de Uiraponga. Em nota, o MP informou que atuou para implementar medidas de proteção da comunidade e de enfrentamento à situação, que resultaram em prisões de suspeitos, instalação de base da Polícia Militar no distrito e envio de tropas do Batalhão de Choque.
O Ministério Público segue trabalhando em conjunto com a Defensoria Pública, as polícias Civil e Militar e a prefeitura para garantir a retomada da normalidade dos serviços públicos e a volta dos moradores, além da rigorosa investigação dos crimes registrados no local.
MP-CE, em nota
Mesmo com a prisão de alguns criminosos que agiam em Uiraponga, famílias temem retorno. O medo é de uma nova onda de violência e de serem ameaçados novamente por outros integrantes das facções criminosas que disputam o controle do território.

Nenhum comentário:

Postar um comentário