AS RUAS FAZEM SOAR ALARME PARA O PT E O GOVERNO
Por Breno Altman, especial para o 247
Um
fantasma ronda o mundo petista. O da perplexidade. Apesar das
importantes conquistas dos últimos dez anos e das pesquisas eleitorais
favoráveis, a onda de protestos abala o principal partido da esquerda
brasileira e aproxima-se do governo federal. Com o prefeito de São Paulo
na berlinda e multidões de jovens nas ruas, tudo o que era sólido
parece se desmanchar no ar.
Muitos
se perguntam o porquê de tanta ira depois de uma década na qual a
pobreza diminuiu, a renda foi melhor distribuída e chegou-se
praticamente ao pleno emprego. É verdade que as manifestações estão
gravitando, por ora, ao redor de uma agenda local. A revolta juvenil
exige principalmente menores tarifas de transporte e direito de
manifestação, contrapondo-se à violência das polícias estaduais. Somente
um autista político, no entanto, deixaria de perceber que uma nova
situação se instaurou no país.
Alguns
petistas, estarrecidos, não hesitaram em vislumbrar, balançando o berço
dos protestos, a mão peluda da direita, arrastando junto os infantes da
ultraesquerda. Mas a narrativa conspiratória não resistiu aos fatos. Os
centros de poder do conservadorismo – especialmente os veículos
tradicionais de comunicação e o governo paulista – desencadearam reação
feroz contra a mobilização, que desaguou na repressão implacável da
última quinta-feira.
A
truculência policial serviu de condimento para a escalada de protestos e
sua nacionalização. A defesa de um direito democrático fundamental,
diante da qual vacilaram, nos primeiros momentos, tanto o ministro da
Justiça quanto o prefeito paulistano, foi assumida com energia e
radicalidade pela juventude das grandes metrópoles. Partidos e governos
da direita foram os responsáveis pela escalada repressiva, mas tiveram a
seu favor a tibieza de setores da esquerda surpreendidos com fenômenos
alheios a suas planilhas.
Parte
do estado-maior reacionário refez suas contas, emparelhando discurso
para disputar a rebelião e voltá-la contra o governo federal,
provisoriamente arquivando a opção da violência. Até o momento, colheram
um rotundo fracasso. Não apenas as manifestações e lideranças
resistiram a abraçar suas bandeiras como foram frequentes cartazes e
palavras de ordem contra o governador Alckmin e a própria imprensa,
especialmente a Rede Globo.
Mesmo
os alvos escolhidos pelos segmentos mais radicalizados – o Palácio dos
Bandeirantes em São Paulo, a Assembléia Legislativa no Rio, o Congresso
Nacional em Brasília – demonstram que os jovens não estão nas ruas a
serviço da restauração antipetista. Tampouco parecem se sentir
representados e incluídos, porém, no processo impulsionado a partir da
vitória de Lula em 2002.
A
imensa maioria dos manifestantes tinha abaixo de 25 anos, formada por
filhos das camadas médias e também dos bairros periféricos. A julgar por
suas palavras de ordem, cartazes e bandeiras, não estão contra as
reformas empreendidas desde 2003. Mas querem mais, melhor e rápido.
Ninguém
levantou a voz para criticar o bolsa-família, o crédito consignado ou o
Prouni. Nenhuma faixa foi erguida para defender privatizações e outras
políticas favoráveis aos interesses de mercado. Poucos eram os
manifestantes que carregavam cartolinas contra o “mensalão” e a
corrupção. A luta é pela ampliação de direitos políticos e sociais,
demanda encarnada pela exigência de barateamento do transporte público.
Mas
cansaram de esperar que estes avanços sejam patrocinados por governos e
partidos, mesmo os de esquerda. Não parecem satisfeitos com a timidez e
a lentidão para realizar novas reformas, mais audazes, que acelerem a
melhoria de suas condições de vida. E resolveram, como ocorre em
determinados momentos históricos, tomar a construção do futuro em suas
próprias mãos.
A
rejeição à presença de bandeiras partidárias pode ser analisada pela
ótica corriqueira, como rechaço a instrumentos de organização coletiva
ou despolitização. Mas também caberia ser compreendida, ao lado de
outros ingredientes, como simbolismo de quem, avesso às correntes
conservadoras ou ao aparelhismo de pequenos grupos, não se sente
cativado ou vocalizado no projeto liderado pelo PT.
Provavelmente
não se trata apenas de uma questão econômico-social, mas igualmente
política. Uma parte da sociedade, mesmo com inclinação progressista, dá
sinais de fadiga com a estratégia de mudanças sem rupturas. Há crescente
mal-estar com uma equação de governabilidade que preserva as velhas
instituições, depende de alianças com fatias da própria oligarquia para
formar maioria parlamentar, abdica da disputa de valores e renuncia à
mobilização social como método de pressão.
Antes
esse cansaço se restringia a pequenos círculos de militantes mais
enfezados. Afinal, muito pode ser feito mesmo sem reformas estruturais, a
partir da reorientação do orçamento nacional, integrando dezenas de
milhões à cidadania e ampliando conquistas sociais. O fato é que esse
cenário pode ter atingido seu teto. E as ruas começam a gritar.
O
movimento não é contra o PT, mas coloca a estratégia do partido e do
governo em xeque. Há uma exigência de protagonismo popular e juvenil,
explicitada nos últimos dias. A direção partidária e o Palácio do
Planalto estão dispostos a considerar essa mobilização um fator de poder
e refazer suas conexões com estes movimentos, impulsionando sua
ascensão para construir forças rumo a uma nova geração de reformas?
Esta
e outras perguntas estão embutidas no alarme que a revolta do vinagre
fez soar. Diante do clamor, o petismo pode retificar sua estratégia e
repactuar com a rebelião das ruas para aprofundar e acelerar reformas de
base. Ou pagar o preço próprio das situações onde a esquerda e as ruas
se divorciam.
Breno Altman é jornalista e diretor editorial do site Opera Mundi e da revista Samuel.