"O
próximo juiz do Supremo Tribunal Federal vai ser terrivelmente
evangélico", disse Jair Bolsonaro, na semana passada, entre améns e
orações, num culto evangélico realizado em plena Câmara dos Deputados do
Brasil, estado oficialmente laico desde 1890. E até 2022, quando
termina o seu mandato, o atual presidente da República, eleito graças ao
apoio de bispos e pastores, poderá ainda nomear mais um membro da
suprema corte, além de 90 outros juízes espalhados por 35 tribunais. Os
evangélicos, que já dominavam o legislativo e exerciam influência sobre o
chefe do executivo, procuram agora controlar a justiça, o poder que
lhes falta.
O juiz "terrivelmente evangélico" a que Bolsonaro se
referia, deu o próprio a entender dias depois, é André Mendonça, atual
advogado-geral da união, cargo com estatuto de ministro no seu governo.
Mas a definição cairia como uma luva também em Marcelo Bretas, o
mediático chefe da Operação Lava-Jato no Rio de Janeiro, que atribui ao
profeta Isaías a teoria da separação de poderes. "Veja o que o profeta
Isaías escreveu aproximadamente 2500 antes de Montesquieu: "Porque o
Senhor é o nosso Juiz; o Senhor é o nosso legislador; o Senhor é o nosso
rei; ele nos salvará (Isaías 33:22)", revelou Bretas, que é, tal como o
presidente, um apaixonado por armas, no Twitter.
Outro
magistrado "terrivelmente evangélico" é Deltan Dallagnol, o rosto mais
visível entre os procuradores do Ministério Público que integraram a
Lava-Jato de Curitiba e um dos principais alvos da Vaza-Jato, o conjunto
de reportagens lideradas pelo jornal The Intercept Brasil que vêm demonstrando desvios na condução da operação. Entre
outros escândalos, foi revelado, nos últimos dias, que Dellagnol chegou
a trocar palestras sobre a Lava-Jato por viagens e estadas em parques
de diversões e que pretendia lucrar quantias milionárias com outras
conferências, através de uma empresa estrategicamente registada em nome
da mulher para afastar suspeitas de conflito de interesses.
No
entanto, o segundo juiz do Supremo que Bolsonaro pode nomear não deverá
ser evangélico: o lugar está prometido ao católico Sergio Moro, atual
ministro da Justiça e conhecido mundialmente por ter mandado prender
Lula da Silva, que liderava as sondagens no sufrágio do ano passado à
frente do presidente eleito, num processo em que, principalmente depois
das revelações da Vaza-Jato, é acusado de parcialidade.
Poder legislativo
O
projeto de poder dos evangélicos começou pelo legislativo, a casa onde
Bolsonaro fez a promessa do juiz "terrivelmente evangélico". De 2006
para 2014 - em duas legislaturas, portanto - o número de deputados
evangélicos passou de 36 para 75, um aumento de 108%, de acordo com o
Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar. Às
vésperas da eleição de 2018, com a entrada de parlamentares suplentes, o
registo já era de 84. E após o sufrágio que elegeu Bolsonaro estima-se
que cerca de cem deputados sejam evangélicos.
"Agora, ao invés de
combatermos a pauta da esquerda, como antes, nós vamos é pautar os
nossos assuntos. A esquerda que trate de obstruir para segurar os nossos
projetos. O jogo inverteu-se", festejou Sóstenes Cavalcante, um dos
deputados evangélicos mais relevantes.
Entre o grupo
destacam-se ainda Silas Câmara, atual presidente da frente parlamentar
evangélica, mais conhecida nos bastidores de Brasília como Bancada da
Bíblia, ou Marco Feliciano, o deputado que quer ser vice-presidente de
Bolsonaro no segundo mandato e para quem o músico John Lennon e a banda
brasileira Mamonas Assassinas morreram por terem ofendido Jesus Cristo. Nos recém-eleitos, a mais notada é a deputada Flordelis, cantora gospel
cujo marido, também pastor, foi assassinado no mês passado, segundo a
polícia, por ação de, pelo menos, dois dos 55 filhos (51 adotados) do
casal.
Mas a renovação política de 2018 prejudicou também
evangélicos poderosos que não conseguiram ser reeleitos. Desde logo,
Eduardo Cunha, o principal responsável pela condução do impeachment de
Dilma Rousseff, cujos casos repetidos de corrupção o levaram à cadeia,
meses depois de cumprir o plano de derrocada da presidente. Ele, claro,
não concorreu em outubro de 2018, mas patrocinou a candidatura,
fracassada, da filha, sob a mesma agenda pentecostal.
Ou Magno Malta, vocalista da banda gospel Tempero de Amor, cinturão preto de jiu jitsu,
amigo e fã do ator de ação Steven Seagal e primeira escolha de
Bolsonaro para a vice-presidência, derrotado para uma vaga no Senado
pelo estado do Espírito Santo por um candidato gay.
Escolhidos
a dedo, na sua maioria, pelos bispos mais poderosos do país, como
Valdemiro Santiago, Wellington Bezerra, Edir Macedo, R.R. Soares ou
Silas Malafaia, o guru da primeira-dama Michelle Bolsonaro, os deputados
evangélicos reúnem-se em torno de uma agenda parlamentar vincadamente
conservadora. Os seus cavalos de batalha são o bloqueio a iniciativas
que reconheçam o direito ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e
ao avanço de projetos que ampliem as autorizações para o aborto, entre
outros.
"O interesse maior da Frente Parlamentar Evangélica é a
preservação da família monogâmica formada por homem e mulher", resumiu o
deputado Lincoln Portela.
Poder executivo
Bolsonaro, dias antes de ter votado o impeachment
de Dilma em memória de Brilhante Ustra, o mais famoso torturador do
regime militar brasileiro, estivera em Israel nas águas do rio Jordão a
ser batizado pelo pastor Everaldo, deputado e candidato presidencial em
2014 ao serviço de Malafaia, num evento muito publicitado de aproximação
formal aos evangélicos.
Embora nascido e criado católico, por
cálculo político e afinidades ideológicas, o presidente sabia que os
evangélicos se revelariam, como se revelaram, decisivos para um eventual
triunfo eleitoral. Hoje, Bolsonaro, capitão do exército reformado, age
mais de acordo com a agenda dos bispos do que com a agenda dos generais,
dos quais se afastou.
Por exemplo, o desejo do pastor
Feliciano de ser seu vice no lugar do general Hamilton Mourão num
eventual segundo mandato é estimulado pelo próprio presidente. E, ainda
antes de tomar posse, para agradar ao segmento meteu-se num beco sem
saída diplomático e económico ao prometer a transferência da Embaixada
de Israel de Telavive para Jerusalém.
Resumindo, se em
teoria os líderes evangélicos não elegeram ainda um presidente, na
prática, podem gabar-se de já o ter conseguido na pessoa de Bolsonaro.
Entretanto,
na segunda maior cidade do país e principal cartão-postal brasileiro, o
Rio de Janeiro, dominam na teoria e na prática já desde 2016, através
de Marcelo Crivella, o prefeito da cidade. Não se pode, contudo, afirmar
que o laboratório evangélico carioca esteja a resultar. Como afirma Ruy
Castro, "Crivella tem tudo para ser candidato a pior prefeito da
história do Rio". E o jornalista e escritor lembra que a concorrência é
fortíssima.
Crivella é cantor, sobrinho de Edir Macedo e bispo da
IURD, igreja que tem um império com representação em 150 países, um
partido político, o PRB, um grupo de comunicação, a Record, e ainda, de
acordo com acusações de igrejas de origem africana, um miniexército, os
Gladiadores do Altar, treinado para atacar os terreiros de Umbanda e
Candomblé.
Poder social
O crescimento da influência dos
evangélicos no poder público não surge do nada: na sociedade brasileira,
o aumento de fiéis evangélicos no (ainda) maior país católico do mundo é
extraordinária.
Em 1940, 95% dos brasileiros eram católicos e
2,7% evangélicos; em 2017, os números apontavam para uma relação
52%-32%; e em 2030 estima-se que os segundos (serão 40%) passem,
finalmente, os primeiros (cairão para 38,6%), segundo estudo de José
Eustáquio Alves, doutor em Demografia na Escola Nacional de Ciências
Estatísticas.
O instituto Datafolha avaliou entretanto que os
evangélicos são, em média, mais jovens e mais pobres do que os
católicos. E que, entre as denominações pentecostais e neopentecostais, a
Assembleia de Deus é a mais numerosa, com 28% do total de evangélicos,
seguida da Batista (11%), da Congregação Cristã do Brasil (6%), da IURD
(5%), da Adventista (4%), da Quadrangular, da Deus É Amor, da Mundial do
Poder de Deus e de centenas de outras em expansão.