O veredicto da História
Mauro
Santayana
Cabe aos tribunais julgar os atos humanos
admitidos previamente como criminosos. Cabe aos cidadãos, nos regimes
republicanos e democráticos, julgar os homens públicos, mediante o voto. Não é
fácil separar os dois juízos, quando sabemos que os julgadores são seres humanos
e também cidadãos, e, assim, podem ser contaminados pelas paixões ideológicas ou
partidárias – isso, sem falar na inevitável posição de classe. Dessa forma, por
mais empenhados sejam em buscar a verdade, os juízes estão sujeitos ao erro. O
magistrado perfeito, se existisse, teria que encabrestar a própria consciência,
impondo-lhe sujeitar-se à ditadura das provas.
Mesmo assim, como a
literatura jurídica registra, as provas circunstanciais costumam ser tão frágeis
quanto as testemunhais, e erros judiciários terríveis se cometem, muitos deles
levando inocentes à fogueira, à forca, à cadeira elétrica.
Estamos
assistindo a uma confusão perigosa no caso da Ação 470, que deveria ser vista
como qualquer outra. Há o deliberado interesse de transformar o julgamento de
alguns réus, cada um deles responsável pelo seu próprio delito – se delito houve
– no julgamento de um partido, de um governo e de um homem público. Não é a
primeira vez que isso ocorre em nosso país. O caso mais clamoroso foi o de
Vargas em 1954 – e a analogia procede, apesar da reação de muitos, que não
viveram aqueles dias dramáticos, como este colunista viveu. Ainda que as versões
sobre o atentado contra Lacerda capenguem no charco da dúvida, a
orquestração dos meios de comunicação conservadores, alimentada por recursos
forâneos – como documentos posteriores demonstraram – se concentrou em culpar o
presidente Vargas.
Quando recordamos os fatos – que se repetiram em 1964,
contra Jango – e vamos um pouco além das aparências, comprova-se que não era a
cabeça de Vargas que os conspiradores estrangeiros e seus sequazes nacionais
queriam. Eles queriam, como antes e depois, cortar as pernas do Brasil. Em 1954,
era-lhes crucial impedir a concretização do projeto nacional do político
missioneiro – que um de seus contemporâneos, conforme registra o mais recente
biógrafo de Vargas, Lira Neto, considerava o mais mineiro dos gaúchos. Vargas,
que sempre pensou com argúcia, e teve a razão nacional como o próprio sentido de
viver, só encontrou uma forma de vencer os adversários, a de denunciar, com o
suicídio, o complô contra o Brasil.
Os golpistas, que se instalaram no
Catete com a figura minúscula de Café Filho, continuaram insistindo, mas foram
outra vez derrotados em 11 de novembro de 1955. Hábil articulação entre
Jango, Oswaldo Aranha e Tancredo, ainda nas ruas de São Borja, depois do
sepultamento de Vargas, levara ao lançamento imediato da candidatura de
Juscelino, preenchendo assim o vácuo de expectativa de poder que os
conspiradores pró-ianques pretendiam ocupar. Juscelino não era Vargas, e mesmo
que tivesse a mesma alma, não era assistido pelas mesmas circunstâncias e teve,
como todos sabemos, que negociar. E deu outro passo efetivo na construção
nacional do Brasil.
Os anos sessenta foram desastrosos para toda a
América Latina. Em nosso caso, além do cerco norte-americano ao continente,
agravado pelo espantalho da Revolução Cubana (que não seria ameaça alguma, se os
ianques não houvessem sido tão açodados), tivemos um presidente paranóico, com
ímpetos bonapartistas, mas sem a espada nem a inteligência de Napoleão,
Jânio Quadros. Hoje está claro que seu gesto de 25 de agosto de 1961, por mais
pensado tenha sido, não passou de delírio psicótico. A paranóia (razão lateral,
segundo a etimologia), de acordo com os grandes psiquiatras, é a lucidez
apodrecida.
Admitamos que Jango não teve o pulso que a ocasião
reclamava. Ele poderia ter governado com o estado de sítio, como fizera
Bernardes. Jango, no entanto, não contava – como contava o presidente de então –
com a aquiescência de maioria parlamentar, nem com a feroz vigilância de seu
conterrâneo, o Procurador Criminal da República, que se tornaria, depois, o
exemplo do grande advogado e defensor dos direitos do fraco, o jurista Heráclito
Sobral Pinto. Jango era um homem bom, acossado à direita pelos golpistas de
sempre, e à esquerda pelo radicalismo infantil de alguns, estimulado pelos
agentes provocadores. Tal como Vargas, ele temia que uma guerra civil levasse à
intervenção militar estrangeira e ao esquartejamento do país.
Vozes
sensatas do Brasil começam a levantar-se contra a nova orquestração da direita,
e na advertência necessária aos ministros do STF. Com todo o respeito à
independência e ao saber dos membros do mais alto tribunal da República, é
preciso que o braço da justiça não vá alem do perímetro de suas
atribuições.
É um risco terrível admitir a velha doutrina (que pode ser
encontrada já em Dante em seu ensaio sobre a monarquia) do domínio do fato. É
claro que, ao admitir-se que José Dirceu tinha o domínio do fato, como chefe da
Casa Civil, o próximo passo é encontrar quem, sobre ele, exercia domínio maior.
Mas, nesse caso, e com o apelo surrado ao data venia, teremos que chamar o
povo ao banco dos réus: ao eleger Lula por duas vezes, os brasileiros
assumiram o domínio do fato.
Os meios de comunicação sofrem dois
desvios à sua missão histórica de informar e formar opinião. Uma delas é a
de seus acionistas, sobretudo depois que os jornais se tornaram empresas
modernas e competitivas, e outra a dos próprios jornalistas. A profissão tem o
seu charme, e muitos de nossos colegas se deixam seduzir pelo convívio com os
poderosos e, naturalmente, pelos seus interesses.
O poder executivo, o
parlamento e o poder judiciário estão sujeitos aos erros, à vaidade de seus
titulares, aos preconceitos de classe e, em alguns casos, raros, mas
inevitáveis, ao insistente, embora dissimulado, racismo residual da sociedade
brasileira.
Lula, ao impor-se à vida política nacional, despertou a
reação de classe dos abastados e o preconceito intelectual de alguns acadêmicos
sôfregos em busca do poder. Ele cometeu erros, mas muito menos graves e danosos
ao país do que os de seu antecessor. Os saldos de seu governo estão à
vista de todos, com a diminuição da desigualdade secular, a presença brasileira
no mundo e o retorno do sentimento de auto-estima do brasileiro, registrado nos
governos de Vargas e de Juscelino.
É isso que ficará na História. O resto
não passará de uma nota de pé de página, se merecer tanto.
Mauro Santayana é um dos maiores jornalistas do Brasil, e meu amigo.