Trumpalhadas e trumpistas
Bernardo Pires de Lima
A
administração Trump devia mudar o nome para administração Trumpalhadas,
tal é a quantidade de esquemas e confusões que produz por hora. Se a
campanha de Donald Trump já não inspirava confiança, a sua presidência
tem sido um desastre, só os nossos trumpistas empedernidos é que ainda
não admitiram. Mete até alguma pena assistir à benevolência concedida a
esta administração por pessoas intelectualmente capazes, mas
culturalmente inaptas para sair da redoma de um desejado politicamente
incorreto, como se isso fosse, por definição, um rótulo necessariamente
positivo. Custa mesmo ver algumas pessoas que, e bem, desdenham Putin e
Erdogan, mas que fazem um contorcionismo patético para acomodar Trump e o
seu séquito de negociantes da Casa Branca, tudo para não serem acusados
de estarem com o outro lado da barricada, essa esquerda maldita dos
democratas. É confrangedor.
Dito
isto, vamos ao histórico. Em meados de outubro, estava a campanha
presidencial ao rubro com algum ascendente de Hillary Clinton, quando a
sua estrutura partidária foi alvo de uma maciça pirataria informática
com origem na Rússia, deitando ainda mais achas numa candidata cheia de
esqueletos no armário e expondo o amadorismo da sua supostamente
experiente máquina eleitoral. A estocada final foi dada pelo diretor do
FBI, James Comey, ao intrometer--se na campanha com uma declaração
bombástica sobre a matéria pirateada, não sobre o crime de ciberataque. A
partir daí, Trump fez o resto, aproveitando para queimar Clinton em
lume brando, passando ele próprio pelos pingos das suas polémicas,
motivando as massas e indo a todos os recantos de estados considerados
impossíveis de ganhar. A arrogância de Hillary Clinton ditou o resto.
Hoje
sabemos que, durante a campanha, o team Trump manteve contacto com o
team Putin em 18 ocasiões, o que por si só, mesmo esquecendo o
ciberataque, é absolutamente bizarro. Uma administração eleita tem todo o
direito a defender uma linha externa de apaziguamento com a Rússia de
Putin, uma cooperação em certos domínios, não exigindo nada em troca,
como o respeito pelos direitos humanos, em especial os das minorias
perseguidas, ou pelo pluralismo político. Tem o direito, mas será
avaliada por essa opção. O que já é difícil aceitar é que um candidato
republicano à Casa Branca, para mais sabendo como o GOP é sensível à
"questão russa", desenvolva uma cooperação obscura com uma potência
rival aos interesses americanos para beneficiar eleitoralmente dela.
Isto tem, obviamente, de ser investigado até à última consequência. Tal
como o papel do general Flynn enquanto avençado do regime turco e como
ponte desse canal com Moscovo: dizer ao mundo que a administração dos
EUA é alicerçada em acérrimos defensores dos interesses iliberais,
negociais e antidemocráticos de Putin e de Erdogan é admitir que a
política americana oficialmente entrou numa twilight zone. Além disso,
demitir o diretor do FBI responsável por esta investigação, no timing,
no modo e com os conteúdos que se conhecem, adensa a imensa nuvem negra
que Trump sempre carregou em cima da cabeleira laranja.
Entretanto,
informações sensíveis foram passadas por Trump a Lavrov, numa reunião
onde a imprensa americana foi proibida sequer de tirar fotos, notícia
que expôs a total desconfiança que a cadeia de informação tem da Casa
Branca e que os aliados da NATO necessariamente reforçarão nos próximos
tempos. Sobre este episódio, o secretário de Estado Tillerson afirmou
não ter forma de saber se os russos tinham ou não uma gravação da
reunião da Sala Oval, um assomo de total loucura política ao mais alto
nível e de uma ligeireza quanto à defesa do interesse nacional
americano. No Kremlin, Putin passou a semana a rir às gargalhadas (como
foi público) e, em DC, os capangas de Erdogan (com o presidente turco a
comandar do carro) distribuíam pontapés na cabeça de manifestantes
pacíficos anti-Erdogan em frente à embaixada. É o que dá acomodar Trump e
a sua conduta.
Claro que as
duas câmaras do Congresso têm de abrir comissões de inquérito e ouvir
tudo e todos em audições públicas. Claro que as agências de investigação
competentes têm de ir ao fundo destas trumpalhadas. E claro que, no
meio disto, o presidente vai passar uns dias num roteiro externo que
começa, triste e singularmente, por Riade, precisamente no dia seguinte
às eleições presidenciais no, novamente, diabolizado Irão. O que já não é
tão claro é se estamos, como disse David Gergen (conselheiro de Nixon e
Bill Clinton), "em território de impeachment". Os democratas estão
contidos nessa exigência, por ser processualmente morosa, não terem
maiorias no Congresso, precisarem de ganhar tempo até às intercalares de
2018, e por não terem ninguém presidenciável para o combate público.
Alguns republicanos começam a pensar que demasiada proteção ao
presidente já é cadastro político e, com a totalidade da Câmara e um
terço do Senado a eleições para ano, os cálculos começam a ser feitos.
Qualquer que seja o ritmo do percurso, o desgaste de Trump é alucinante e
isso reflete-se na posição internacional dos EUA, numa semana em que o
presidente chinês fez, de forma hábil e inteligente, uma nova
megaoperação de charme sobre a milionária Nova Rota da Seda, vincando o
universalismo comercial e político deste seu "sonho chinês". Se Vladimir
Putin é o tático diabólico que meteu Trump no bolso, Xi Jinping foi
quem melhor percebeu a oportunidade única que abre esta administração.
Ao contrário destes dois, Trump é um político inexperiente, sem qualquer
estratégia ou discernimento para o exercício do cargo. O mínimo que os
nossos trumpistas deviam sentir era vergonha.