'Vamos mostrar ao crime que quem manda é o Estado', diz governador do CE
Na fala do governador do
Ceará, Camilo Santana (PT), as palavras "disciplina" e "rigor" vêm
seguidas das batidas na mesa com a mão. Ele gosta de pontuar as palavras
mais firmes com socos na mesa comprida do gabinete no Palácio da
Abolição, sede do governo, onde recebeu o jornal O Estado de S. Paulo nesta quinta-feira, 10.
Camisa branca de manga comprida, olhos cansados, caneta
na mão e notebook à frente: assim está o governador no 9º dia de
ataques a prédios públicos e privados do Ceará, na maior crise de
segurança pública do Estado. Um copo e uma caneca de café, já vazios,
descansam ao lado de uma pilha de papéis timbrados.
O celular está distante, no canto da mesa. "Como tem
estado o seu WhatsApp, governador? Tem recebido muitas fake news?",
questiona o Estado. "Eu mal olho. Na realidade, fake news não tenho
recebido, não. Meus contatos são mais com secretários e com a população,
que manda relatos. Aquilo que chega, falo logo que é mentira. Respondo.
Se tivesse tempo, responderia a tudo", diz o governador. Mas, há mais
de uma semana, Santana corre contra as madrugadas, período em que os
ataques ocorrem na capital e no interior. Até agora, segundo o
governador, foram registradas oficialmente 180 ocorrências.
Santana mantém o tom baixo da voz, pouco se exalta,
mesmo ao ser perguntado sobre possível envolvimento de milícias na série
de ataques. Ele não descarta, mas preferiu não entrar em detalhes ("Há
coisas que ficam restritas às informações estratégicas da polícia"). O
único momento em que endurece o discurso e pontua cada palavra com um
murrinho na mesa é: "Vamos mostrar que quem manda aqui é o Estado".
O Ceará já transferiu 21 líderes de facções criminosas e
prepara a transferência de outros 20 ainda nesta quinta-feira. O
ministro da Justiça Sergio Moro concedeu 60 vagas em presídios federais.
Enquanto isso, quem fica no sistema penitenciário estadual vai perder o
que Santana chama de "regalias". A principal delas é a comunicação. Já
foram apreendidos 500 celulares na última semana. E começaram a ser
removidos televisores e tomadas das unidades prisionais.
O endurecimento do sistema prisional, diz o governador
cearense, está só começando. Ele reforça que o sistema está preparado e -
o governo, no controle - para dar conta de possíveis guerras internas
no sistema penitenciário entre facções criminosas. "Estou construindo
uma estrutura, aperfeiçoando a minha estrutura para garantir maior
controle, que eu possa manter a disciplina, manter a lei dentro dos
presídios", afirma.
O Ceará vive o 9º dia de ataques. Nesta
madrugada, houve um atentado em uma estação do Metrô. É uma crise
persistente. Qual é a sua avaliação da situação até agora?
Primeiro, tivemos uma redução significativa. Tivemos aí
o pico de ataques e agora praticamente houve uma redução muito forte,
muito significativa, tanto na capital quanto no interior. A cidade já
volta à sua normalidade. Mas a minha compreensão é de que a gente está
sofrendo essas consequências fruto de uma decisão. Quando assumi o
governo em 2015, eu assumi, e esse é um debate que o Brasil hoje faz,
que é o problema da violência. O Brasil aumentou os seus indicadores de
forma muito assustadora. Uma das coisas que prometi foi olhar para este
tema com muita determinação. E na época, em 2015, convidei os maiores
especialistas dessa área, convidei o pessoal do Fórum Nacional de
Segurança Pública, para fazer um diagnóstico do Estado e construir um
plano. Passamos o primeiro ano todo ouvindo a sociedade, ouvindo as
entidades. Construímos um plano que tem três eixos. O eixo de
fortalecimento policial, o eixo de... Na época chamamos de eixo de
justiça porque o sistema penitenciário estava ligado à Secretaria da
Justiça, na verdade o eixo era o sistema penitenciário, e o eixo
prevenção social. Porque ninguém consegue resolver o problema da
violência... Violência é fruto da desigualdade. É um problema urbano que
a gente tem nas cidades. Falando do eixo que nos interessa, do ponto de
vista da crise, é o eixo do sistema prisional. A polícia prende o
bandido, ele vai para dentro do presídio e continua comandando o crime
lá de dentro. Essa é uma realidade do Brasil, não é uma realidade do
Ceará.
Como ele continua comandando o crime?
Comunicação. É tanto que em 2016 fiz uma lei aqui no
Ceará obrigando as operadoras de celular a bloquear o sinal dentro dos
presídios.
E naquela semana teve uma ameaça de bomba...
Mas fomos para cima, fizemos a lei, aprovamos. Mas o
STF derrubou, alegando que os Estados não têm poder de legislar sobre
esse tema. E foi o meu grande o debate, que passei quatro anos
levantando da necessidade de o governo federal assumir as suas
responsabilidades. Ou seja, narcotráfico, tráfico de drogas, proteção de
fronteiras, não é responsabilidade dos Estados. O que está acontecendo
no Brasil é que o crime se transnacionalizou, ultrapassou as fronteiras.
Alguém tem de coordenar isso. Como é que eu posso ter autonomia se não
posso nem legislar sobre esse tema? Quem tem de legislar é o Congresso
Nacional, o governo federal... Que é diferente dos Estados Unidos, onde
tem Estado que decreta prisão perpétua por exemplo para preso. Mas ele
pode legislar sobre isso. Tem Estado que não tem, tem Estado que tem.
Cada um pode legislar sobre o tema. Se nós não pudemos legislar sobre o
tema, se as nossas forças de segurança estão sempre subordinadas às
forças nacionais, que a Constituição de 1988 colocou isso claramente,
então quem tem de coordenar isso é a União. Foi um debate que fizemos
por quatro anos. Acho que o governo federal ainda no governo Temer deu
um passo importante, criou um Ministério de Segurança, o Congresso
aprovou o Sistema Único de Segurança Pública, o SUSP, que agora acho que
é um instrumento que precisa ser colocado em prática, um Fundo com
poucos recursos, mas pelo menos temos um fundo hoje de quase R$ 2
bilhões para serem investidos este ano no sistema.
Sem essa lei, o sr acha que o governo enxuga gelo, só apreendendo celular...? Não adianta?
Não, não é isso. É que se você for analisar
historicamente, qual foi a estratégia, qual foi o plano, qual é a
política nacional para enfrentar a violência neste País? Temos algumas
iniciativas, mas que fracassaram. Você precisa chamar o Poder
Judiciário. Eu apenas guardo presos. Quem julga é o Poder Judiciário.
Tenho hoje 29 mil presos, mas a grande maioria são presos provisórios.
Não são presos condenados. Então precisa ter o Poder Judiciário
envolvido nisso. Precisa ter o Congresso revendo leis, que considero que
tem leis ainda muito frouxas no Brasil. E as forças nacionais que são
responsáveis por proteger as fronteiras brasileiras... Não somos grandes
produtores de drogas, não somos grandes produtores de armas. Não
produzimos armas pesadas no Brasil. É preciso definir o papel de cada
um. Acho que o sistema, como a gente tinha um Sistema Único de Saúde,
tinha um Sistema Único de Educação, era necessário ter um Sistema Único
de Segurança. Com metas e objetivos de redução da criminalidade, com
indicadores de controle, definindo papéis. Defendi que houvesse os
centros integrados de inteligência. Um comando lá do Rio de Janeiro dá
ordem aqui no Ceará. Um comando lá de São Paulo dá ordem para o
Amazonas. Então, se você não tem informação integrada... Por exemplo, o
ministro Raul Jungmann (ex-ministro da Segurança no governo Temer)
inaugurou o primeiro centro integrado de inteligência aqui em dezembro.
Ou seja, todos os Estados no Nordeste, e esse centro é coordenado pelo
governo federal, ajudando e cooperando, e já até auxiliaram o Ceará
principalmente neste momento. Superando esse tema, decidi no final do
meu governo, depois de ter feito concurso público para agente
penitenciário, ter dobrado o número de agentes, ter construído novos
presídios, ou seja, ter uma estrutura física melhor no sistema, tomei a
decisão de criar uma secretaria exclusiva para olhar este tema. Ou seja,
a compreensão de que se nós não fizéssemos cumprir a lei rigorosamente
dentro do sistema prisional, continuaríamos com os reflexos aqui fora.
Convidei o secretário Mauro (Luís Mauro Albuquerque, atual secretário de
Administração Penal). Queria uma pessoa que tivesse experiência nessa
área. E chamei para ser meu secretário no final do ano passado. Ele
aceitou. Estava no Rio Grande do Norte. Aquela crise que teve em Alcaçuz
ele conseguiu solucionar, implantar dentro do sistema regime
disciplinar... Eu trouxe. E tomamos a decisão de que queríamos fazer
cumprir a Lei de Execução Penal dentro do sistema. E sabíamos as
consequências disso. Sabíamos que as consequências viriam por conta da
reação do crime organizado no Ceará. O que vem acontecendo esses 10 dias
no Ceará é uma reação à ação dura que o Estado tem feito dentro do
sistema prisional. Ou seja, estamos tirando a comunicação, tirando as
regalias, transferindo presos e vamos endurecer. Vamos mostrar que quem
manda aqui é o Estado. Por conta disso, diante da responsabilidade que
tenho com a população, chamei de imediato a Força Nacional, pedi apoio
do governo federal, pedi as vagas no sistema prisional para poder
transferir os presos, e isso é uma burocracia tremenda... Para a gente
conseguir transferir um preso para um sistema prisional federal. Fui
prontamente atendimento pelo governo. Tenho mantido relação de contato
permanente com o ministro da Justiça (Sergio Moro) e o ministro da
Defesa (Fernando Azevedo e Silva). Não tem sido uma decisão fácil, tem
sido uma decisão difícil porque tem reflexos para a população.
Quais têm sido os reflexos para a cidade?
Teve reflexo no dia a dia. Reflexo no transporte
público, nos serviços essenciais à população, na sensação de medo da
população. É uma guerra também de comunicação. Porque tem os
oportunistas que querem criar o medo e o temor. Também o próprio crime
organizado quer criar o medo e o temor na população para forçar que o
Estado recue. Tudo isso é uma tentativa de fazer com que o Estado recue
das ações dentro do sistema penitenciário. E tenho dito que não irei
recuar um milímetro diante dessa situação. O Estado tem de mostrar que
quem manda é o Estado, que preso não pode ter regalia, nem ter
comunicação, nem comandar o crime de dentro do presídio. Esta é uma
decisão, um passo que estamos dando, sabendo das consequências disso.
Mas sei que estamos fazendo isso pensando no futuro do meu Estado,
pensando que as famílias cearenses, seus filhos e netos, possam ter um
Estado melhor a médio e longo prazo. O Estado tem investido o que é
necessário para a gente cumprir essa meta. Acredito que este é um papel
que não podemos fazer sozinhos, sem ter o apoio da União, sem ter o
apoio da sociedade. Hoje mesmo, agora à tarde, vou ter uma reunião com
todas as entidades de classe que têm me apoiado. Tenho andado nas ruas e
a população (diz): "Olha, nós estamos com medo, a gente sente. Mas tem
de ir para cima, tem de fazer isso mesmo". Então é isso: vamos endurecer
dentro do sistema, fazendo a Lei de Execução Penal ser cumprida
rigorosamente e vamos endurecer aqui fora também no combate ao crime
organizado.
Em relação aos ataques aqui fora, o sr. falou que estão diminuindo...
É, nesta madrugada, tivemos apenas três ocorrências. Tivemos um dia com mais de 50 ocorrências.
Ao todo foram quantos?
Quase 180 ocorrências e 277 pessoas já presas.
Em quanto tempo o sr. espera zerar esses ataques?
É imprevisível. Vamos continuar cumprindo, eu repito, a
questão dentro dos presídios. Ninguém sabe. O trabalho de inteligência
tem feito todos os dias. A gente criou um gabinete de situação. A cada
12 horas a gente avalia como está a situação. As ações iniciaram muito
fortes aqui na capital quando a gente colocou uma presença muito forte
da polícia. Migraram para o interior. Depois, a gente colocou um reforço
no interior, começaram a diminuir. Teve um episódio nessa madrugada,
nas últimas horas, no interior. Pelo menos o momento mostra que o crime
está recuando. Se isso vai permanecer, é imprevisível. Por isso vamos
nos manter em alerta 24 horas para que a gente possa evitar surpresas ou
outras ações aqui no Estado.
O que a inteligência já sabe sobre o envolvimento de facções nesses ataques?
Olha, para mim é complicado passar informações que
devem ficar restritas à inteligência. Mas foi detectado envolvimento com
os crimes organizados aqui fora de todos os presos transferidos. Por
isso foram transferidos. A resposta o Estado dá. Então, vamos
transferir. Preso vai ficar longe do seu Estado, da sua família. E todos
estão sendo autuados. Mesmo presos lá dentro do presídio, está sendo
autuado.
Foram 21 transferidos para presídios federais?
Foram 21 e agora serão transferidos mais nas próximas horas.
Esses primeiros 21, vocês identificaram ligação com qual das facções?
Tratamos criminosos como criminosos. Preso aqui no
Ceará, a minha determinação é tratar como criminoso, independentemente
se faz parte de qualquer grupo. Criminoso é criminoso.
Governador, conversei com o sociólogo César
Barreira, coordenador do LEV (Laboratório de Estudos da Violência, da
Universidade Federal do Ceará) e ele nos disse que não que os estudiosos
estejam afirmando isso, mas levantou uma possibilidade do envolvimento
de milícias nesses ataques. Existe essa possibilidade de envolvimento de
milícias ou são só as facções criminosas mesmo?
Pelo menos a mim não chegou nenhuma informação. Mas
repito: são coisas que às vezes ficam restritas a informações
estratégias da polícia.
Então o sr. não descarta?
Não.
Outros Estados, como Rio Grande do Norte e
Amazonas, viveram uma crise parecida, mas no sistema penitenciário. O
Ceará teve em 2016, mas com algumas rebeliões...
Em 2016 a gente tinha uma greve (dos agentes
penitenciários). Aí quebraram o sistema todo. Não foi uma rebelião, foi
uma greve, e na época, quebraram o sistema todo. Passei quase dois anos
recuperando o sistema. Precisei reconstruir. Imagina reconstruir com
preso dentro? Tinha toda uma logística. Precisei acelerar outras
unidades que estavam em obra, precisei dividir o presídio e reconstruir
um lado para depois (reconstruir outro). Foi um período que nós passamos
em 2016, e 2017 principalmente, e ainda em 2018, reconstruindo o
sistema, fazendo concurso público para ter mais agente. Fomos nos
preparando para chegar até este momento de tomada de decisão. Temos um
sistema melhor, temos mais agentes penitenciários, temos condições de
ter controle dentro do sistema, então vamos tomar a decisão.
Os presídios no Ceará têm estrutura para evitar por exemplo uma guerra interna entre facções que eventualmente ocorra?
O que posso garantir é que temos presídios muito
melhores do que tínhamos anteriormente. Estou construindo agora o
primeiro presídio de segurança máxima do Ceará. Nós não temos presídio
federal aqui. Pretendo inaugurar agora em junho. Estou acelerando. Estou
construindo uma estrutura, aperfeiçoando a minha estrutura para
garantir maior controle, que eu possa manter a disciplina, manter a lei
dentro dos presídios.
Mas na estrutura como está hoje, o governo tem
capacidade de manter o controle e evitar rebeliões, brigas e guerras
internas entre as facções?
Até agora temos mantido. Temos controlado. Numa
situação dessas em outro momento, poderia ter criado uma... Ao
contrário, as únicas reações que tiveram foram de fora. Mas isso não
quer dizer que não possa acontecer. É imprevisível.
Queria finalizar perguntando sobre o Mauro
Albuquerque, que o sr. citou. O governo vai continuar endossando essa
declaração dele, de que não reconhece facções?
Eu dei toda a autonomia para o Mauro trabalhar e fazer
suas ações e suas estratégias dentro do que diz a lei e do que diz a Lei
de Execução Penal dentro do sistema. Ele tem tido todo o meu apoio para
que possa fazer. E acho que isso pode servir até de exemplo para o
Brasil e para outros Estados brasileiros neste momento em que o Ceará
enfrenta esta situação.
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