O fiofó de Luíz XIV (XIV é 14 em algarismos romanos)


Como uma infecção no fiofó do rei Luís XIV mudou a história das cirurgias

Rodrigo Casarin


Luís XIV, conhecido também como Rei Sol, o cara que ocupou o trono da França entre 1643 e 1715, quando morreu aos 76 anos. Enquanto não estava resolvendo burocracias e cuidando do seu reino, adorava cavalgar, caçar e comer. Aliás, comia muito. Era um glutão. Não adiantava recomendarem calma. Seguia encarando quantidades enormes de comida numa velocidade impressionante. Também era um porco. Como era comum em sua época, acreditava que tomar banho enfraquecia a pele e deixava o corpo mais vulnerável a doenças. Limitava-se a lavar superficialmente o rosto quando acordava. Sua cama era um ninho de pulgas. Seu cheiro era insuportável, por mais que vivesse banhado pelos mais caros perfumes.
Pois some voracidade à mesa com a falta de hábitos higiênicos e temos uma combinação propícia para o surgimento de infecções na pele. Coloque na mistura o gosto por passar longas horas sobre um cavalo e chegamos à delicada situação na qual Luís XIV se encontrava em algum momento do século 17. O cotidiano fez com que o Rei Sol desenvolvesse uma infecção no fiofó – ou uma fístula anal, para ficarmos numa linguagem mais condizente com a realeza.

Os médicos da corte – formados em pomposas universidades, conhecedores de toda a tradição grega – até conseguiam contornar o acúmulo de pus durante algum tempo, mas ele sempre voltava. Por mais que relutassem, perceberam que havia apenas uma solução para aquele problema: submeter o rei a uma cirurgia. Cirurgiões, no entanto, numa época em que a profissão ainda andava colada ao ofício de barbeiro, não eram bem-vistos pelos doutores. Paciência…
Chamaram Félix, primeiro-cirurgião real, e lhe conferiram a missão. O homem topou, mas disse que primeiro precisava praticar. Disponibilizaram-lhe, então, internos de hospícios e militares alojados em quartéis para que pudesse aliviar as dores de fiofós alheios – numa época de higiene parca, problemas como o do rei não eram incomuns. Tempos depois, como é fácil de prever, Félix pegou seus melhores instrumentos, encarou a retaguarda real e fez aquilo que nenhum médico tinha conseguido fazer: resolveu o drama do rei. No tratamento, vinho da Borgonha era aplicado sobre a ferida íntima. O sucesso e a repercussão foram tão grandes que operações de fístulas no ânus – ou qualquer coisa que se assemelhasse a isso, como uma simples hemorroida – tornaram-se moda na corte francesa.

Félix foi bem recompensado pelo rei. Ganhou uma grana e algumas terras, o que lhe garantiu um espaço na nobreza. Aproveitando o momento favorável, ousou pedir algo a mais a Luís XIV: gostaria que a profissão de cirurgião fosse regulamentada para que deixassem de ser subordinados aos médicos. A realeza, então, muretou. Sem querer desagradar o povo da medicina, acabou por regulamentar a profissão de barbeiro. Dentre outras coisas, estipulou que quem cortava o cabelo já não podia mais operar as pessoas. De certa forma, a profissão de cirurgião estava então imposta e poucas décadas depois já surgiria, inclusive, a Academia Real de Cirurgia. Tudo isso graças ao problema no fiofó do Rei Sol.
A passagem está em "30 Histórias Insólitas que Fizeram a Medicina – O Impensável, O Acaso e a Genialidade por Trás dos Maiores Avanços Médicos Desde a Antiguidade" (Vestígio), livro cheio de causos bons de ler de maneira despretensiosa. Há ainda no volume, por exemplo, um santo católico que talvez tenha confundido os efeitos do LSD com visão de outro mundo, o médico que foi criticado por seus colegas ao sugerir que jovens gestantes lavassem as mãos (olha aí a cultura da falta de higiene mencionada anteriormente) e a história de Hipócrates, o pai da medicina, que viveu ali entre os anos 300 e 400 a.C., cujo juramento ainda serve de norte para os médicos de nossos dias.
O autor da obra é o francês Jean-Noël Fabiani, diretor do departamento de cirurgia cardiovascular do Hospital Europeu Georges-Pompidou, de Paris. Ele começou a colecionar essas passagens interessantes quando foi escalado para ministrar a disciplina de História da Medicina na Universidade de Paris-Descartes, posto que ocupou ao longo de dez anos. Na introdução do volume, Fabiani passa por alguns pontos cruciais da evolução médica, mas lembra que tal história segue em movimento e longe de ser encerrada (o que, se é uma obviedade para alguns, pode soar como provocação a outros):
"A doação de órgãos é debatida em diversos países, a utilização de células embrionárias humanas para clonagem terapêutica está longe de ser consensual, mesmo a transfusão sanguínea é reprovada por alguns… Certas mulheres preferem 'dar à luz com dor', ao passo que a anestesia peridural é autorizada em todos os países industrializados. A circuncisão feminina ainda mutila inúmeras mulheres, inclusive na França…".
Em alguns – ou muitos – pontos, parece que ainda vivemos na época de Luís XIV.

Nenhum comentário:

Postar um comentário