O rearranjo de rotas, prêmios por lotes ainda isentos do tarifaço e fretes mais caros reprecificaram a cadeia inteira. As torrefadoras dos EUA já sinalizam repasses, deixando o consumidor americano no centro da tormenta, à beira de novos aumentos nas gôndolas. Os futuros do arábica, variedade mais valorizada no mercado, saltaram de US$ 2,842 por libra (1 libra = 0,4536 kg) em 1º de agosto para US$ 3,757/libra no fechamento de ontem.
O que torna a disparada de preços particularmente bizarra é que o movimento ocorre em agosto, mês de pico da colheita, quando a maior quantidade de sacas no mercado deveria estar pressionando as cotações para baixo.
Segundo dados da Cooxupé (Cooperativa de Guaxupé), no sul de Minas, uma das principais zonas produtoras do mundo, a colheita já alcançou 91% das lavouras. O preço do café arábica fechou o dia de ontem em R$ 2.390,00, conforme os dados da Minasul, de Varginha (MG).
O choque já bate à porta do consumidor americano. Segundo a Bloomberg, a J.M. Smucker (dona das marcas Folgers e Café Bustelo) planeja novos reajustes "no começo do inverno" (no hemisfério Norte) para compensar as tarifas. A Keurig Dr Pepper, outra gigante do varejo americano de café, alertou que o impacto ficará mais visível no segundo semestre. E, ainda segundo a Bloomberg, a Westrock Coffee indicou que custos adicionais serão repassados aos clientes.
Para Ricardo Schneider, a disparada dos preços na Bolsa de Nova York pode ser explicada pela preocupação climática com a entrada das chuvas, por relatos de que a safra colhida está um pouco abaixo do esperado e por apreensão com a próxima safra.
"Soma-se a isso a incerteza criada nos EUA. Uma estratégia de proteção do industrial americano, enquanto não há definição, é comprar contratos na Bolsa de Nova York. Se ele vê risco de não conseguir café brasileiro nos próximos seis meses e muitas vezes já até vendeu esse café, ele se protege comprando bolsa e, conforme vai substituindo origens, vai zerando posições", diz Schneider.
Schneider preside o Centro de Comércio do Café do Estado de Minas, uma entidade setorial que reúne mais de 160 associados distribuídos por toda a cadeia do café, incluindo exportadores, comerciantes, transportadoras, corretores, escritórios de advocacia especializados e auditorias.
A safra brasileira de café de 2024 foi estimada em 54,2 milhões de sacas de 60kg, segundo o 4º levantamento da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Na atual safra que já está muito avançada na colheita, a quantidade de sacas que tem chegado aos armazéns e cooperativas mineiras tem sido, segundo Schneider, ligeiramente menor do que no mesmo período do ano passado, com a mesma área colhida, o que deve indicar uma produção menor do que em 2024.
Segundo ele, o fluxo de comercialização em Minas "segue relativamente normal", apesar da incerteza. "Os contratos de exportação hoje são mais curtos (três ou quatro meses). Vendemos, por exemplo, para embarcar em setembro, outubro, novembro. Depois compramos o café correspondente. Esse fluxo está mantido: produtor vendendo, cooperativas vendendo, exportadores comprando — nós mesmos comprando regularmente", afirma.
E faz a ressalva: "O que mudou foi a postergação de embarques já contratados. Empresas americanas pedem para segurar o embarque para não arcar com mais 50% de tarifa agora. Em alguns casos, solicitam o cancelamento ("shelter"): o exportador refaz a conta e propõe a compensação. Há espaço para renegociar. Mas, no geral, ninguém nos EUA está hoje comprando ativamente café brasileiro para embarque rápido por causa da incerteza. Se houvesse certeza de que 'de hoje em diante é assim', o mercado se reorganizaria. Por ora, não há prazo: pode cair amanhã, em um mês ou seis — incerteza é sempre ruim".
Inflação autoinduzida
Na prática, a sobretaxa nos EUA reduziu a atratividade do principal fornecedor global (Brasil), estimulou a busca por origens alternativas (Colômbia e América Central), valorizou carregamentos isentos (cargas brasileiras de café que chegarem aos EUA antes de 5 de outubro) e forçou redirecionamentos para Europa e Ásia.
Brasil e Vietnã, os dois maiores produtores do mundo, vinham de safras mais apertadas desde o ano passado, mas, isoladamente, esse quadro não justificaria uma alta tão brusca em plena colheita brasileira. O tarifaço foi o gatilho, ao encarecer a principal rota que liga as lavouras do maior produtor do mundo em direção ao maior mercado consumidor.
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"Tecnicamente e do ponto de vista de mercado, essa tarifa não faz sentido. A relação Brasil-EUA no café é extremamente saudável e bem alinhada. O café brasileiro é vital: cerca de 30% do café verde importado pelos EUA vem do Brasil — e a presença do grão brasileiro é ainda maior nos blends vendidos no varejo e em cafeterias", explica Schneider.
"Diferentemente de outras tarifas com objetivo de "reindustrializar" os EUA, no café isso não se aplica: cerca de 99% entra como matéria-prima (grão verde) e a industrialização ocorre dentro dos Estados Unidos. Ou seja, o café brasileiro não é problema para o emprego industrial americano. Ao contrário, ele é necessário", racionaliza.
Diferença com o suco de laranja
Uma questão de fundo quando se comparam as commodities exportadas pelo Brasil para os EUA nos últimos anos, salta aos olhos a diferença de tratamento conferida pelo governo Trump para o suco de laranja e o café. O primeiro entrou na lista de exceções enquanto o segundo foi atingido pela sobretaxa.
"No suco, além do importador, houve atuação forte do exportador brasileiro, que é um mercado mais concentrado e com urgência maior por ser perecível. No café, o setor também tem municiado as autoridades com informações sobre impacto e relevância. Falta de informação não há", afirma o presidente da entidade.
"O que será feito com isso, quando e por quem vai ceder primeiro: — se o governo brasileiro vai chamar para a mesa ou se o presidente dos EUA vai temer um impacto inflacionário. Este é o 'x' da questão. A gente monitora o noticiário e já vê comentários sobre encarecimento do café. Mas não há sinalização de mudança até agora", disse.
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