Da Carta Capital
Descontado o fato natural de as declarações presidenciais não
necessariamente terem total apego ao real em virtude de expectativas que
podem causar, especialmente em assuntos econômicos, é inquietante o
erro de percepção a que tem sido induzida Dilma Rousseff por sua frágil
equipe. A pressão sofrida pelo real perante o dólar nos últimos tempos,
disse a presidenta, é um fenômeno produzido por causas externas,
especialmente pelos norte-americanos. Não se deve, portanto, a questões
internas do Brasil.
Gravíssimo engano se esse for o ponto de partida para atacar o
explosivo problema cambial brasileiro. Diga-se logo: não falamos de
urgências urgentíssimas. De fato, temos muita “bala na agulha”, como
disse a presidenta, para administrar uma transição, graças aos mais de
370 bilhões de dólares em nossas reservas cambiais. É preciso,
entretanto, conhecer o aspecto cancerígeno que o problema tem sobre
nossa sorte econômica enquanto nação.
O Brasil tem experimentado déficits recordes em suas contas externas.
A cada mês, o recorde é batido e neste ano já quer mirar os 75 bilhões
de dólares. É o resultado de todas as nossas contas em dólar com o
estrangeiro. O que temos de pagar a eles, em todas as rubricas, e o que
eles têm de nos pagar de volta. Tirante um restinho de saldo comercial
de cuja certeza nem sequer temos mais, o buraco é generalizado e em
escala crescente. Trata-se de um problema estrutural. Não foi criado
pelo atual governo, mas é dele a indeclinável tarefa de montar a equação
de saída, tanto mais se o prazo para termos turbulências graves
explodir muito provavelmente em um possível segundo governo Dilma.
Perdoem-me os letrados, o mercado de dólar funciona da mesma maneira
que aquele de bananas em Sobradinho: se tiver pouca banana e muita gente
disposta a comprá-la, o preço sobe. Se o Brasil tem uma brutal escassez
de dólares, em virtude de déficits recordes e em expansão, o preço do
dólar em real tende a subir. A causa é intrinsecamente nacional.
Certamente, causas externas podem atenuar ou agravar a tendência
estrutural de nosso momento econômico. E todas as condicionantes
visualizáveis externamente hoje nos estressam. Até as possíveis boas
notícias, como a especulada retomada de um nível razoável de atividade
econômica nos EUA.
Vejam aonde chegamos por nossa própria culpa e incompetência: se
melhorar a economia global puxada pelos Estados Unidos, nossas
dificuldades de financiar o brutal rombo que cevamos se agravarão. E
teremos de começar a usar nossas “balas na agulha”… Ou seja, manipular a
taxa de câmbio por meio da venda de dólares baratos (como o Banco
Central tem feito) para os especuladores encastelados na banca
brasileira e internacional. Para, mais cedo ou mais tarde, quebrarmos.
Enquanto isso, o País se desindustrializa. A indústria brasileira hoje representa exíguos 13% do PIB.
O diagnóstico correto é a condição essencial para o correto ataque ao
problema. E assusto-me em ouvir meu amigo Guido Mantega falar em
“minicrise” e não abrir uma conversa franca sobre as saídas, enquanto a
crise é só crônica. Esse filme é velho, já visto. E teve a reeleição,
essa praga introduzida em nossos costumes, como causa. “A bala na
agulha” na época foi o maior empréstimo do FMI em toda a sua história,
em vez das reservas atuais. Fernando Henrique ganha as eleições de 1998
e, em janeiro de 1999, o real mica. Nota cultural: todos os bancos
privados acertaram claramente a véspera de virada no câmbio, menos o
Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e os minúsculos Marka e
FonteCindam (mas aí o escândalo é outro, é o do Chico). O prejuízo para a
nação brasileira foi superior a 18 bilhões de dólares.
Vamos decompor esse déficit. Vamos entendê-lo, produzir iniciativas
consistentes para superá-lo. Algumas pistas são óbvias. Como a Petrobras
pode ser a principal causa isolada da deterioração de nosso saldo
comercial? Temos de pagar tal fortuna em royalties?
Vamos auditar essa conta. Por que um país detentor de 8,4 mil
quilômetros de costa abre mão de ter uma Marinha Mercante e paga mais de
10 bilhões de dólares de frete a estrangeiros? De novo a assaltada
Petrobras, a maior responsável… Por que a maior agricultura tropical do
planeta tem de importar 40% de seus insumos? Por que o governo federal
importa mais de 15 bilhões de dólares para o Ministério da Saúde, 76%
com patente vencida, segundo o professor Carlos Gadelha, da Fiocruz? É
razoável que os uniformes das Forças Armadas brasileiras sejam
importados da China, como quase aconteceu recentemente?
Saudades do Bussunda: fala sério.
* Ciro Gomes,
Ex-ministro da Fazenda.