Impeachment: fantasia política sem base jurídica
Dalmo de Abreu Dallari *
Desde a reeleição da Presidente Dilma Rousseff, em outubro de 2014, quando ela recebeu do povo
brasileiro,
por meio de votação livre e rigorosamente democrática, 54 milhões de
votos para exercer um segundo mandato na Presidência da República,
começaram a aparecer na imprensa declarações de dirigentes e militantes
do PSDB, partido derrotado, sugerindo e ameaçando a adoção de medidas
antidemocráticas visando tirá-la da Presidência e partir para uma
aventura, sem qualquer consideração pelos interesses do Brasil e de seu
povo. Dando sequência a essas manifestações dos perdedores
inconformados, a imprensa vem divulgando nos últimos dias, com
injustificável evidência, a informação de que, aproveitando as
revelações sobre a prática de corrupção na Petrobras, envolvendo
quantias muito elevadas, está sendo cogitada uma proposta de
impeachment da Presidente Dilma. E foi dada publicidade a um parecer
que fora encomendado ao prestigioso jurista Ives Gandra Martins, para
apoiar a tese segundo a qual o fato de que ela era Presidente do
Conselho de Administração da Petrobras quando, em 2006, foi decidida a compra da refinaria de petróleo de Pasadena, nos Estados Unidos, por preço
exorbitante e favorecendo ilegalmente alguns altos funcionários da
Petrobras que
foram
intermediários da compra, esse fato de 2006 daria o fundamento jurídico
para o impeachment. Um dado expressivo é que os que fazem essa acusação
admitem que ela não praticou qualquer ato de má-fé naquela
oportunidade, apoiando conscientemente um mau negócio ou acobertando a
ação corrupta dos funcionários que participaram da realização do
negócio, mas dizem que foi culpada por omissão, não impedindo aquelas
irregularidades. E aí estaria o fundamento para o pedido de destituição
de Dilma Rousseff da Presidência da República.
Para que se compreenda o significado dessa ameaça à Presidente da
República e para que mesmo os leigos em matéria jurídica possam entender
e avaliar o significado de tal ameaça, inclusive recebendo
esclarecimentos sobre a real possibilidade jurídica de sua utilização, é
oportuna a divulgação de uma análise, ainda que sucinta, do
enquadramento jurídico dessa questão, pois isso interessa a todo o povo
brasileiro. Evidentemente, forçar a Presidente da República a deixar o
cargo antes do prazo de vencimento do mandato recebido do povo é ato de
extrema gravidade, que, mesmo quando praticado com rigorosa obediência
aos preceitos constitucionais e legais, acarreta grave perturbação na
vida do País. E se a deposição da Presidente ocorrer por um ato de
força,
mesmo que com aparente base jurídica, estará sendo dado um golpe de
Estado, que poderá ser muito conveniente para um pequeno grupo de
golpistas mas será extremamente danoso para todo o povo, significando a
implantação de uma ditadura, com suas inevitáveis mazelas.
O
primeiro
ponto que deve ser esclarecido é que nem na Constituição nem nas leis
brasileiras aparece a palavra impeachment. Essa palavra, de origem
inglesa, quando aplicada para determinar a retirada, com o caráter de
punição, de um governante ou administrador público de seu cargo, tem o
significado de « destituição » ou « impedimento ». E é isto que se está
pretendendo pedir agora. A possibilidade jurídica de pedir a destituição
do Presidente da República está expressamente prevista na Constituição,
no artigo 85, segundo o qual « são crimes de responsabilidade, cuja
prática dará fundamento para afastá-lo do cargo, os atos do Presidente
da República que atentem contra a Constituição Federal e especialmente
contra :…V. a probidade na administração ». O que se tem aí é o
enunciado genérico dos crimes de responsabilidade. Se o Presidente da
República cometer algum desses crimes poderá ser destituído por decisão
do Congresso Nacional, obedecidos os procedimentos que a própria
Constituição estabelece. E no parágrafo único desse mesmo artigo
dispõe-se, expressa e claramente : « Esses crimes serão definidos em
lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento ». A
lei especial aí referida, que trata especificamente dos crimes de
responsabilidade, é a Lei Federal n° 1079, de 10 de Abril de 1950, que,
segundo opinião unânime dos juristas, foi recepcionada pela Constituição
de 1988.
Quanto à definição dos crimes, que lhe cabe por
disposição constitucional, dispõe a Lei 1079, no artigo 1°, que «são
crimes de responsabilidade os que esta lei especifica », fazendo em
seguida, em vários incisos, a enumeração das espécies de crimes,
dispondo o inciso V sobre os que atentam contra « a probidade na
administração ». E quanto a estes, no artigo 9°, que completa os dados
necessários para esta breve análise, estabelece a lei que « são crimes
de responsabilidade contra a probidade na administração :…3. não tornar
efetiva a responsabilidade « dos seus subordinados » (obviamente,
subordinados do Presidente da República, que é o objeto exclusivo da
lei).
Sintetizando o que acaba de ser exposto, há dois
requisitos fundamentais que devem ser observados para dar consistência
jurídica a um pedido de destituição do Presidente da República por ter
praticado um crime de responsabilidade, como prevê o artigo 85 da
Constituição: o primeiro ponto é que a base fática indispensável para
tornar viável um pedido dessa natureza é que se apontem, como
fundamento, « atos do Presidente da República ». Isso está expresso na
Constituição e seria evidentemente inconstitucional um processo de
impeachment que se fundamentasse em atos ou omissões ocorridos quando,
anos atrás, Dilma Rousseff ocupava um cargo na direção da Petrobras.
Outro ponto é que por disposição expressa da Lei 1079, que define os
crimes de responsabilidade, outra hipótese de configuração da prática de
crime de responsabilidade é o fato de não tornar efetiva a
responsabilidade de seus subordinados, ou seja, dos subordinados da
Presidência da República. Como é público e notório, a Presidente Dilma
Rousseff, tão logo informada das acusações de corrupção na Petrobras,
determinou que fossem adotadas providências rigorosas visando
esclarecer os fatos e punir os eventuais culpados. Basta a consideração
desses dois pontos para que se entenda minha respeitosa discordância do
parecer do ilustre colega Ives Gandra Martins, acima referido.
Para finalizar, é importante que se saiba que desde a posse da
Presidente Dilma Rousseff para exercer o primeiro mandato presidencial
até agora já foram protocolados na Câmara dos Deputados, que é por onde
deve começar o processo, doze pedidos de impeachment. Em todos esses
casos os pedidos foram examinados por uma Comissão Especial da Câmara
dos Deputados, como previsto em seu regimento, tendo sido proposto por
ela e decidido pelo plenário o arquivamento de todos eles, por absoluta
falta de fundamento legal. Se agora for apresentado um novo pedido,
como tem sido ansiosamente sugerido por altos dirigentes do PSDB, e se
esse pedido tiver a pretensão de se basear na fundamentação jurídica
acima referida, certamente haverá mais um arquivamento, em obediência às
disposições constitucionais e para preservação da ordem jurídica
democrática no Brasil. Assim, pois, a ameaça de pedido de impeachment
não deve ser levada a sério, não merecendo ser tratada como
possibilidade real, mas sim como simples desabafo de maus perdedores
tentando manter-se em evidência.
* Jurista